O poeta que se intitula Hediondo nos versos deste soneto
descreve com riqueza de detalhes o que se passa em seu corpo. É uma seqüência de detalhes que se assomam
num estado de desespero que parece sugerir verso a verso um colapso do corpo,
um ataque do coração, um desfalecimento e até mesmo o prenúncio dos seus
momentos finais.
Os sons dentais das consoantes "d" e "t" auxiliam a
sonoridade do poema a se apresentar como o tema de morte que finalmente surge
ao fim do poema. Freqüentemente esses sons se encontram inclusive em posição de
destaque sendo as sílabas tônicas de cada verso. Esses sons ecoam ao longo do poema prenunciando a temática fúnebre da morte.
Composto por versos heróicos o poeta demonstra uma capacidade única de domar o
ritmo dos polissílabos. Feito raro na nossa poesia tão afeita a tijolos
pequenos, o poeta aqui constrói não com azulejos o seu mosaico de versos e sim
um castelo de sólidos e pesados componentes. A escolha dessas palavras faz
parte do objetivo frio e certo do poeta, de uma poesia de ângulos agudos, de
palavras diretas, onde muitos poetas floreiam e rodeiam o poeta em questão é
direto, objetivo, científico. A agudeza
de seus versos, o tamanho das palavras que escolhe e a maestria que consegue
adequar tudo isso ao metro canônico é um feito hercúleo de raríssimas
similitudes na língua portuguesa.
É impressionante a conjugação de concreto e metafórico que o
poeta alcança ao tratar de descrever sensações tão viscerais, é impossível não
senti-las de imediato ao ler o poema, impossível não sentir em seu peito como
seriam essas aceleradíssimas pancadas que abrem o soneto. Os termos complexos nos fazem sentir entre a
mesa de cirurgia e a de autópsia. Um clima de agonia e conflito que não se
resolve e apenas cria mais e mais tensão.
Na primeira estrofe temos um Algo que desperta o sujeito poético Algo que
dispara as pancadas do coração por ameaçar sua própria vida tratada aqui como
existência em seu sentido mais orgânico. A mortificadora coalescência pode ser
vista como a própria morte quando o organismo cessa seus processos fisio-químicos
que mantém o corpo em funcionamento, é quando todos os elementos do corpo
passam a se movimentar para se tornar um só, voltar para a decomposição final
uma única unidade de matéria.
E tal processo de morte descrito é causado por algo além do mero infortúnio, é
a soma das desgraças humanas, mas não se trata de uma mera soma, é um somatório
com fim, objetivo e função. A congregação das desgraças humanas é uma visão de
que esses males atuam num processo escatológico, um processo destinado. Há um
vaticínio, uma má sorte guiando essas desgraças a fim de resultar no fim do Poeta
do Hediondo.
Na segunda estrofe, em seu primeiro verso, é retomada a idéia do coração que
bate forte e intenso, são cavalgadas em seu peito que os desnorteiam, que o
fazem alucinar. E justamente nesse delírio de agonia surge na mente uma
consciência. Uma culpa de um misticismo cientificista que atribui as suas neuronas
despertas pela agonia a capacidade de antever seu futuro.
Pela medicina de sua época uma Sonda em seu cérebro é decerto que post-mortem
ou por si mesmo uma forma de morte. Com os versos que o antecedem compreende-se
que é uma clarividência uma visão de seu futuro à mesa de autópsia. Tendo,
inclusive um diagnóstico, um vaticínio sendo a sua causa mortis a mais hedionda
generalização do Desconforto. Notando-se aqui um ponto importantíssimo no uso
de maiúscula para gravar o desconforto, há uma entificação desse sentimento.
Ele é tornado um personagem dessa história maldita. Algo que acompanhou a tanto
o poeta que se torna por si algo além de um mero sentimento mas também um Ente
de sua narrativa e quem sabe até seu verdadeiro Algoz.
A última estrofe do poema soa depois de sua agonia, morte e
autópsia como se estivesse escrita na lápide do poeta. Uma lápide daquele que
rejeitou ou não teve como ter para si o consolo do lirismo doce de seus
predecessores, que não acreditou no descanso do Parnaso e nem conseguiu fugir
para o mundo Onírico do Simbolismo. É uma estrofe que descreve bem seu poema,
marcado pela tangibilidade absoluta da carne,
Não se trata aqui da mera pedra do caminho tão cantada por
poetas portugueses e brasileiros. Mas
dos ossos, reais e inegáveis. Não há nesses versos de augusta qualidade a
possibilidade de imediata abstração, são sim os ossos é sim, a inexorabilidade
da morte que está presente. É uma poesia de um vivo que antevê sua morte, que a
sente em cada parte de seu corpo. Que canta para ela em Desconforto em uma
agonia que se presentifica verso a verso e que nessa última estrofe tenta
escapar pelo seu reconhecimento.
O POETA DO HEDIONDO
Sofro aceleradíssimas
pancadas
No coração. Ataca-me
a existência
A mortificadora
coalescência
Das desgraças humanas
congregadas!
Em alucinatórias
cavalgadas,
Eu sinto, então, sondando-me
a consciência
A ultra-inquisitorial
clarividência
De todas as neuronas
acordadas!
Quanto me dói no cérebro
esta sonda!
Ah! Certamente eu sou
a mais hedionda
Generalização do
Desconforto...
Eu sou aquele que ficou
sozinho
Cantando sobre os ossos
do caminho
A
poesia de tudo quanto é morto!
(Augusto dos Anjos - EU E OUTRAS POESIAS)