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Poeta e apenas poeta

Já me olharam espantados quando digo que sou poeta e só poeta. Que não canto, nem danço, nem atuo, nem pinto, nem bordo, que "só" ...

quarta-feira, 27 de dezembro de 2023

Glauco Mattoso, dos olhos ao ouvido: uma análise da poética concretista e sonetista do autor.


 

Um livro de poesia na gaveta não adianta nada 

Lugar de poesia é na calçada 

Sérgio Sampaio




Introdução 

 

Pedro José Ferreira da Silva. Mais conhecido como Glauco Mattoso é, em seus próprios termos, poeta, ensaísta, ficcionista, pós-maldito, pornosiano, barrockista, deshumanista, anarchomasochista, pós-maldito. Figura fácil nos espaços de contracultura da cidade de São Paulo e também presente na letra da canção "Língua" de Caetano Veloso, tem uma extensa e profícua produção literária em formas e estilos diversos. Com romances-pastiche, como a Planta da Donzela, com o JORNAL DOBRABIL, com seus milhares, sim milhares, de sonetos, Glauco é uma figura emblemática da poesia contemporânea brasileira, desde os anos 60 até os dias atuais. A obra de Glauco Mattoso é um verdadeiro desafio para os estudiosos dos campos literários e artísticos, uma vez que abrange uma pluralidade estilística curiosa, indo da poesia visual à produção musical. Além disso, seus discursos transgressores, que abordam temáticas constrangedoras e linguagem obscena, tornam a análise de sua obra ainda mais complexa.  

As produções de Mattoso, JORNAL DOBRABIL e Melopeia, são díspares no tempo e estilo, tendo, em comum, a cidade de São Paulo como seu espaço de criação. Em comum também a variedade de temáticas e inspirações, indo da filosofia ao fescenino, do poema-piada ao poema-protesto, passando por ironias, galhofas, toda sorte de provocações que tornam sua poesia de sabor intenso e, às vezes, deliberadamente indigesta. Como recorte, podemos analisar sua transição de pseudônimos que, nas primeiras edições do JORNAL DOBRABIL, se apresenta como o assonante Pedro, o Podre, e caminha para a autoironia de Glauco Mattoso, em alusão ao glaucoma que lhe tirou a possibilidade da poesia concreta e lhe enviou aos braços de Gregório de Matos e seus sonetos cuja temática Glauco sempre louvou em suas próprias obras. 

Os jornais DOBRABIL são um conjunto de obras lançadas pelo autor nos anos 70 do século XX. Nestes trabalhos, que emulam o formato de um jornal tradicional, o autor insere sua poética concretista usando os caracteres de uma máquina de datilografia para formar seus versos, sua prosa, seus poemas concretos e também toda a diagramação dos seus jornais, ou seja, margem, fontes, tipografia e tamanho de letra, tudo é composto apenas pelos caracteres de uma máquina de escrever. Cabe destacar que a inserção da poética concretista, nos jornais DOBRABIL, representa uma importante contribuição do autor para a renovação da poesia brasileira nos anos 70, conforme assegura Haroldo de Campos ao dar a Glauco o epíteto de Poeta do Asfalto em seu livro Poesia Urbana 

O álbum Melopéia é uma obra de Glauco Mattoso lançada no início da primeira década do século XIX, obra em que Glauco convida diversos artistas para interpretarem seus sonetos através da música. São escolhidos músicos das mais diversas vertentes, como o punk rock da banda Inocentes, o funk de DJ Krâneo, o escárnio de Falcão, o concreto de Arnaldo Antunes, o existencialismo de Humberto Gessinger, o punk brega de Wander Wildner e até mesmo o soprano de Edson Cordeiro, entre outros que caracterizam esse álbum como "Uma antropofagia, até sadia, / tornou a nossa música salada / de fruta, nacional ou importada" como canta Tato Fischer, tecladista dos secos e molhados, na faixa inaugural do álbum.  

Importante explicitar como a obra de Mattoso é afetada pelo desenvolvimento do glaucoma, como, ao abraçar sua cegueira, o poeta se aferra aos sonetos isométricos, retorna a uma poesia calcada na sonoridade, no ritmo e na eufonia dos versos. É este evento que, ao tornar-se crônico, volta toda a genialidade do autor, antes posta na concretude dos seus versos, para os elementos do som. É interessante ainda perceber que a forma conecta esses elementos da poética do Pedro, o Podre até o Glauco Mattoso. Em seu Soneto 241 Ensaístico, cantado na Melopéia por Wander Wildner, o poeta demonstra seu reconhecimento por sua fase inicial “Chamemo-la de fase iconoclasta, / à minha poesia antes de cego. / Pintei, bordei. Porém não a renego. para então dizer o motivo de sua guinada: “Forçou-me a invalidez a dar um basta.” e apresentar sua nova fase “A nova não é casta, nem contrasta / com velhas anarquias. Só me entrego / ao pé, onde em soneto a língua esfrego. / Chamemo-la de fase podorasta. em que conta como, apesar da aparente distância, ainda há conexão entre suas fases à primeira Iconoclasta e a segunda Podorasta. Esta segunda ele concilia com a primeira ao dizer “Mas nem por isso é menos transgressiva. / Impõe-se um paradoxo na medida / da forma e da temática obsessiva” e, como chave-de-ouro, seu último verso é “Ao cego, o feio é belo, e a dor é vida. em que o contraditório entra em harmonia através de sua poesia. O paradoxo de sua produção poética é parte de sua conciliação e une, nos seus próprios termos, a forma do poema concreto com a forma do soneto. E demonstra que é possível expressar-se dentro do crivo da forma em objetos poéticos que podem ser visuais como uma estrutura de concreto ou sonoras como aquelas de um cego aedo grego. 

 

Capítulo 1: Fase Iconoclasta 

 

 

Chamemo-la de fase iconoclasta, 

à minha poesia antes de cego. 

Pintei, bordei. Porém não a renego. 

Forçou-me a invalidez a dar um basta. 

 

 

JORNAL DOBRABIL 

 

A fase iconoclasta do autor, tem na profusão das edições do JORNAL DOBRABIL1 o seu ponto de inflexão, ilustrando ali suas principais manifestações poéticas, políticas e estéticas. Posteriormente, o autor rememora essa fase no Soneto 241 Ensaístico. 2 Em seu quarteto inicial o soneto revela a autodefinição do autor como iconoclasta, alguém que desafia e destrói os padrões estabelecidos pela sociedade. Os versos Chamemo-la de fase iconoclasta, / à minha poesia antes de cego. / Pintei, bordei. Porém não a renego. / Forçou-me a invalidez a dar um basta expressam a atitude rebelde e transgressora do autor em relação à sua própria poesia. Mesmo na iminência de perder a visão devido ao glaucoma, ele não renega seu estilo e suas experimentações. 

Chamemo-la de fase iconoclasta, o próprio autor assim a chama e é bem propícia tal afirmação, afinal, em sua produção dessa época percebe-se que o auto publicado JORNAL DOBRABIL se marca pelos heterônimos diversos atuando em diálogo, conflito, crítica e em registro marcante do momento, histórico, que o autor vive sua poesia antes de cego. Seus heterônimos poderiam muito bem cantar Pintei, bordei. Porém não a renego., pois, durante os anos de chumbo da ditadura militar, as edições do jornal são, em suma, sua forma de protesto, sua militância artística, poética, estética e política. Neste período, as edições do jornal se tornam, em essência, uma forma de protesto e uma expressão de sua militância.  

Dentro das páginas do JORNAL DOBRABIL, através do seu Manifesto Coprofágico 3,um discurso que permeia seus heterônimos e os evidenciando em sua referência ao Manifesto Antropofágico 4 de Oswald de Andrade, travando uma guerrilha poética contra os poderes estabelecidos pelo golpe de 1964 e seus apoiadores na imprensa, revistas e na sociedade em geral. 

Ainda na década de 1970, o poeta encontra na Arte Postal uma maneira de contornar a vigilância imposta pelos militares, adotando uma abordagem artesanal para a produção independente. A proliferação de revistas literárias na época inspira Glauco Mattoso na criação de sua obra - o JORNAL DOBRABIL. Durante as décadas de 1970 e 1980, ele reside temporariamente no Rio de Janeiro, onde ganha notoriedade na marginália literária ao editar o fanzine "anarcopoético" intitulado JORNAL DOBRABIL, um trocadilho com o Jornal do Brasil, que era então o jornal mais influente no Rio de Janeiro. Ao satirizar o Jornal do Brasil, o DOBRABIL vai além da mera paródia do nome, trazendo uma abordagem irreverente à poesia criada pelos heterônimos do autor, cujos destinatários eram cuidadosamente selecionados. 

No JORNAL DOBRABIL, destaca-se não apenas o conteúdo com temas irreverentes, mas também a reinterpretação da antropofagia. Mattoso publica seus manifestos Escatológico5 e Coprofágico nesse veículo, reinterpretando a antropofagia oswaldiana sob o título de coprofagia, que envolve a reapropriação do que é excluído ou rejeitado culturalmente. Os poetas da época não visavam apenas estabelecer uma vanguarda literária tradicional; seu propósito primordial residia na oposição às circunstâncias políticas, morais e, sobretudo, artísticas prevalecentes. Mattoso adota uma posição contrária ao ideal de beleza, deliberadamente expondo uma linguagem transgressiva em seus manifestos. Seu vocabulário é repleto de palavras censuráveis pelos valores morais da sociedade em que se insere. Trata-se de um abandono estético dos padrões estabelecidos, questionando a necessidade de uma poética com palavras suavizadas e eufemísticas, em vez de termos que dizem explicitamente o que pretendem. Trata-se de um abandono estético dos padrões estabelecidos que questiona a necessidade de uma poética de palavras suavizadas, eufemísticas, de termos que aludem com vergonha de dizer o que querem de fato. 

Ao longo do JORNAL DOBRABIL há um desfilar profícuo dos heterônimos de Pedro José Ferreira da Silva. Cada qual com sua própria persona, estilística e temática favorita. Pedro, o Podre compartilha as páginas, colunas e pautas do jornal com Pedro, o Glande, Pedro Ulysses Campos, Garcia Loca, Billy Lyra, Glauco Espermatoso, Pedravski, Pedro Pedra, Puttisgrilli e o próprio Glauco Mattoso. Interessa salientar que cada um assume funções editoriais que lhes são próprias, quais sejam, redator, editor, colunista, leitor, anunciante etc. 

O que se pode chamar de seu projeto estético reside na meticulosa construção da persona literária de Glauco Mattoso, que confunde o leitor ao misturar aspectos de sua vida privada com seu universo ficcional. Isso permite uma leitura interpretativa que considera a figura autoral como um heterônimo, semelhante às instâncias literárias criadas no JORNAL DOBRABIL e em outras publicações que marcaram seus primeiros passos na carreira literária. 

Segundo Ana Paula Aparecida Caixeta (2018), nós podemos recorrer a Fernando Pessoa (2012), que descreve a heteronímia como a criação de um "autor fora da pessoa", uma individualidade completa fabricada pelo próprio autor. Mattoso, por sua vez, apresenta uma notável proliferação de heterônimos, como "Pedro, o Podre" e "Pedro, o Glande", que desempenham diferentes papéis no JORNAL DOBRABIL. A repetição desse gesto criativo sugere uma possível revisão da ideia de que Glauco Mattoso seja apenas um pseudônimo. Seu apego aos discursos auto escarnecedores e à brincadeira com nomes próprios por meio de trocadilhos e personificações reforça a construção ficcional de sua identidade literária, indo além de um mero espaço para confissões pessoais. 

Outrossim há um jogo com as distintas consciências literárias de seus heterônimos é uma constante ao longo da produção literária de Mattoso, sendo especialmente evidente em "Pedro, o Podre", satírico e fescenino, no JORNAL DOBRABIL. Em uma de suas publicações, Pedro, o Podre deixa claro que cagar é um ato político6 colocando assim a escolha manifesta pela coprofagia como tema central dentro da obra de Mattoso.  O Podre é responsável pela parte mais chula e iconoclasta do jornal, enquanto Glauco Mattoso desenvolve poemas mais elaborados e de temáticas diversas. Embora haja essa distinção, não existe uma divisão clara entre os versos concretos, experimentais e humorísticos, pois ambos os estilos coexistem no JORNAL DOBRABIL. 

Segundo João Maria Freire Alves (2015), em sua tese, seu principal heterônimo artístico, Glauco Mattoso, alude à sua cegueira e marca sua própria literatura, Mattoso, atravessa suas obras literárias com tantos outros heterônimos, especialmente na fase de escrita no JORNAL DOBRABIL. Entre eles estão Pedro, o Glande, Garcia Loca (com os quais assina seus dois manifestos mais famosos: Manifestivo Vaguardada e Manifesto Coprofágico), Pedro, o Podre, Glauco Espermatoso, Pedravski, Puttisgrilli, e o próprio Glauco Mattoso. Dentro da estética mattosiana, cada heterônimo possui identidade própria que, porém, não deixam de ser versões do próprio autor. Os limites distintivos entre os heterônimos e o autor são ambíguos e permeáveis. Convém notar que, dentro dessas miscelâneas de alcunhas, nomes e heterônimos o próprio Pedro José Ferreira da Silva, inexiste enquanto signatário dos textos literários. São esses heterônimos que ocupam todo o espaço autoral, não sobrando ao Pedro original qualquer espaço para assumir um papel autoral dentre os tantos que assinam suas obras. 

A coprofagia, elemento central do JORNAL DOBRABIL e da maioria de seus escritos, é definida por Glauco, como uma releitura escatológica da antropofagia. Segundo Glauco Mattoso, ela representa a linguagem vulgar, inspirada em suas leituras, parodiada e transportada para o papel por meio de sua máquina de escrever, com a datilografia definindo o formato tipológico do JORNAL DOBRRABIL. 

Coprofagia esta que é uma ação abjeta que faz parte do discurso da "merda" e representa uma sátira à antropofagia oswaldiana, que aglutinava elementos culturais alheios para criar uma cultura própria. Na visão de Mattoso, a coprofagia é um processo de recolhimento do que foi culturalmente excluído, representando literariamente a mistura e a influência direta do que é lançado ao autor como uma forma de apropriação do discurso e da criação do outro. 

É no JORNAL DOBRABIL que os manifestos coprofágico e escatológico são publicados, estabelecendo uma ligação direta com o manifesto antropofágico oswaldiano. A cegueira que atinge Mattoso e sua fixação na podolatria, que compõe a narrativa de seus desejos íntimos e fetiches, desempenham um papel fundamental na construção de sua poética escatológica. Antes de perder a visão, o poeta recicla de forma jocosa a antropofagia oswaldiana, reinterpretando-a por meio do conceito de coprofagia. Este processo representa a valorização de atributos muitas vezes negligenciados no contexto formal do universo erudito. 

 

(MATTOSO, JORNAL DOBRABIL, 2001, p. 11). 

 

Glauco Mattoso publica o Manifesto Coprofágico, um pastiche do Manifesto Antropófago em seu suplemento jornal dadarte que ocupava o verso de seu JORNAL DOBRABIL. Pastiche é um termo utilizado na literatura e nas artes para descrever uma obra ou estilo que imita ou faz homenagem a outros estilos, obras ou autores.  Em um pastiche, o criador emprega técnicas, temas e elementos característicos de outras obras, misturando-os para criar algo novo, mantendo, no entanto, uma reverência ao material fonte. Essa técnica permite uma intertextualidade, dialogando com diferentes tradições e estilos literários ou artísticos. O pastiche pode ser usado para explorar ou questionar gêneros e convenções estabelecidas, oferecendo uma maneira de conectar diferentes períodos, estilos e abordagens em uma única obra. 

Neste manifesto, Mattoso realiza um jogo de palavras com os versos iniciais do poema "Romance Sonâmbulo" de Federico García Lorca, dedicado a Gloria Giner e Fernando de los Ríos, que começa com "verde que te quero verde". Esse jogo de palavras é utilizado para desenvolver ícones comportamentais e transgressores que permeiam sua poesia. A palavra "merda" é recorrente ao longo de todo o "manifesto" e sugere a decomposição da tradição sem, no entanto, desprezá-la completamente. Os versos finais refletem a intenção e a atitude do poeta: "Merda (...) és meu continente terra fecunda onde germina, minha independência, minha indisciplina". A Coprofagia, dialogando com a Antropofagia e a tradição, torna-se um ponto de referência fundamental na poética de Mattoso. Enquanto os modernistas tinham a Antropofagia como seu princípio criativo, Mattoso adota a Coprofagia como uma forma de "degustar" preceitos anteriores para criar novas perspectivas. No entanto, ele adverte que o resultado dessa deglutição pode não ser agradável aos olhos da sociedade tradicional, patriarcal, censuradora e excessivamente conformista. Assim, ele desafia, rebela-se, confronta e choca com uma poética que está longe de ser convencional e moldada. 

Escrever sobre Glauco Mattoso é uma tarefa que também possui suas facilidades ao deixar explícitas suas intencionalidades e metodologias. Seus escritos em prosa e verso frequentemente têm caráter autobiográfico e, além disso, apresentam uma dimensão autoanalítica, por meio da qual investiga sua própria psique, motivações, técnica e estilística. Em seu prefácio do livro JORNAL DOBRABIL, o autor discorre sobre o momento histórico de sua produção marginal, explicando sua técnica e os meios disponíveis nesse período. 

O processo criativo de Mattoso desenrola-se como um intrigante jogo no qual o autor e o leitor se envolvem em múltiplas percepções, explorando o terreno entre o real e o fictício, o cotidiano e, principalmente, o humano. De maneira contrária às convenções e aos preciosismos associados à criação e à genialidade, Glauco Mattoso constantemente faz referência a essas normas, demonstrando sua compreensão perspicaz do processo criativo e autoral. 

O poeta paulistano traça uma linha condutora que persiste em seu vasto conjunto de obras, guiada por elementos estéticos que se repetem com frequência, portanto, propositais e integrantes de um projeto estético deliberadamente construído. Entre esses elementos, a figura autoral com inclinações fetichistas – o sujeito que existe para além do domínio literário – é explorada com minúcia, da mesma forma que seus textos poéticos e narrativos. A preocupação do autor com a representação pública do escritor denota um gesto que vai além do aspecto estético, abrangendo discursos que outras instâncias hesitariam em assumir como autorais. Estes discursos, marcados por uma ironia em relação à própria poesia, à criação e à autoria, manifestam-se através de uma linguagem escatológica, dando forma à peculiar coprofagia glaucomattosiana. 

Escolher uma figura autoral que dê conta da sua condição confessada – no caso, a maldição da cegueira e o fetiche por pés – e que assuma discursos complexos e delicados no que tange aos corpos, aos valores morais, éticos e religiosos é uma possibilidade válida quando se trata de um personagem. O autor chama a cegueira de maldição e alia-se a ela provocando uma espécie de personificação da cegueira e do glaucoma. O glaucomatoso Glauco Mattoso é bem mais do que um sujeito comum fora do espaço ficcional, é uma instância literária que ocupa o espaço da legitimação de discursos: 

Só mesmo os estabelecimentos bancários (..) dispunham de computadores, então monstruosamente grandes. Jornalistas e escritores utilizavam máquinas de escrever (...) As duas marcas mais vendidas, Remington e Olivetti, não diferiam muito em qualidade o estilo, e todas apresentavam as mesmas limitações: fonte única, corpo único, padrões únicos de alinhamento verticais e horizontais, isto é, monoespaçamento (letra embaixo de letra, sempre o mesmo limite de toques por linha) e entrelinha mínima equivalente a um dente da engrenagem movida pela alavanca, de modo que esta descia uma linha avançando dois ou mais dentes. Quem quisesse trocar de fonte, de corpo, ou de redondo para itálico, teria que trocar de máquina (Mattoso, 2001: 2). 

Quando Pedro José Ferreira da Silva assinava seu JORNAL DOBRABIL com sua profusão de heterônimos , o mesmo já tinha em seu horizonte a perda da visão para o glaucoma e sua poesia marcada pela visualidade do concretismo era uma de suas tantas auto ironias, pois, obsessivo com a perda futura da visão trabalhava com as formas mais intrincadas da poesia concreta 

Eu misturei as coisas porque o concretismo era muito clean, era muito limpo, era muito assim antisséptico, não contaminado pela poesia de banheiro, pela poesia de bordel e não de cordel, né? E eu comecei a misturar as coisas, então eu já fui, mais ou menos, mal-criado, né? (00:03:51 - Mattoso em entrevista a Pinto, Manuel da Costa   2019 - Biblioteca Pública de São Paulo). 

O Concretismo, um movimento literário e artístico que ganhou destaque na década de 1950, representa uma abordagem inovadora na poesia e nas artes visuais. Caracteriza-se pela ênfase na estrutura e na forma, em detrimento do conteúdo semântico convencional. Os poetas concretistas rompem com a linearidade tradicional da poesia, explorando a disposição espacial das palavras na página para criar significado e ritmo visual. Isso faz com que a poesia concreta transcenda a mera leitura oral, convidando o leitor a uma experiência visual e perceptiva mais ampla. 

A Poesia Visual, intimamente relacionada ao Concretismo, amplia essa exploração da forma visual da linguagem. Enquanto o Concretismo foca na estrutura e na disposição espacial das palavras, a Poesia Visual vai além, incorporando elementos gráficos, cores, e até mesmo interações tridimensionais. Esta forma de poesia não se limita ao texto, mas utiliza todos os aspectos visuais da página (ou de qualquer outro meio onde seja apresentada) para comunicar e evocar emoções. A Poesia Visual desafia as fronteiras entre a poesia e as artes visuais, fazendo com que cada obra seja uma experiência única tanto de leitura quanto de observação.  

O Soneto 241 possui fortes elementos biográficos e de autoironia. Nesta primeira quadra somos confrontados com esta fase na qual o poeta se enxerga como um iconoclasta o autor se utiliza dos eufemismos "pintei, bordei" para dizer de suas inúmeras transgressões à sociedade e aos padrões éticos, estéticos e políticos de seu tempo, conforme podemos perceber na citação acima.  Em seu JORNAL DOBRABIL, principal publicação do autor à época, vemos expressões como "Cagar é um ato político" escrito através de uma técnica de conjugação de letras para formar um tamanho de fonte maior que a padrão da máquina de escrever utilizada. Sobre a própria máquina, seu instrumento de composição Glauco esmiúça detalhes do fazer poético que sofre a censura da própria técnica, onde as características inerentes ao funcionamento do equipamento que utiliza para datilografar os originais de seu jornal são fundantes para o resultado de sua produção estética. 

O ovo de Colombo foi a descoberta do meio espaço, isto é, a possibilidade de teclar uma letra na posição intermediária entre dois caracteres normalmente digitados, o que era obtido pressionando-se o espaçador simultaneamente à tecla desejada. Aqui surgiu fundamental diferença entre uma Remington e uma Olivetti. A primeira não posicionava a letra exatamente na metade da distância entre os dois dígitos, enquanto a segunda tinha total precisão (Mattoso, G. Uma odisséia do meio espaço JORNAL DOBRABIL, 2001, p. 2). 

O autor descreve, detalhadamente, os aspectos técnicos que o fizeram optar pela Olivetti no lugar da Remington. Conta como o meio ponto preciso oferecido pela máquina escolhida foi fundamental para a realização das suas pretensões poéticas concretistas e satírico-fesceninas. Através dessa técnica de formatação do texto em uma página A4 o autor desenvolve uma capacidade de desenhar e emular um jornal de maneira autônoma e independente do maquinário necessário para imprimir um jornal tradicional. O JORNAL DOBRABIL é uma paródia poética e política dos jornais de sua época reiteradamente censurados e vigiados pelo aparato repressivo da Ditadura Militar vigente à sua época 

Feita a escolha, pude compor linhas "pontilhadas" onde cada ponto era representado pela letra "o" minúscula, que por seu formato circular permitia direcionar a linha tanto na horizontal quanto na vertical ou diagonal.(...) A partir daí, a criatividade e o mimetismo não teriam limites na pesquisa de famílias tipográficas assemelhadas às mais diversas fontes empregadas pela grande imprensa nos cabeçalhos e manchetes, bem como pelos artistas gráficos em seus projetos semióticos (Mattoso, G. Uma odisséia do meio  espaço JORNAL DOBRABIL, 2001, p. 2). 

Em suas páginas emulam-se colunas, reclames, propagandas, correio opinativo tal e qual um jornal tradicional, mas dessa vez com um conteúdo lírico que desconcerta o leitor e provoca a reflexão sobre os temas abordados. 

Meu fanzine passou a fazer parte disso porque era uma folha só. Frente e verso, eu datilografava, xerocava e misturava nisso tudo. Nessa datilografia, misturava um pouco de poesia de banheiro não é um pouco de poesia concreta? E um pouco de classicismo, aquela coisa de mexer com os com os autores clássicos. Só que de uma forma desrespeitosa. (00:04:54 - Mattoso em entrevista a Pinto, Manuel da Costa   2019 - Biblioteca Pública de São Paulo).  

JORNAL DOBRABIL pode ser dividido entre suas edições cariocas do ano de 1977 correspondentes às folhas de 1 a 21 da edição em livro e as paulistanas das folhas 22 a 25 de 1978, das folhas 26 a 33 de 1979, das folhas 34 a 49 de 1980 e das folhas 50 a 53 de 1981. No verso da folha 1 temos a assinatura de Pedro, o Podre nos versos: 

 

(Mattoso, Glauco, JORNAL DOBRABIL, numero hum!!!, anno xiii!!!) 

 

Nos versos seguintes, o poeta continua misturando o chulo com reivindicações de sua época, aproximando palavras como "peidar" com "liberdade democrática", "mijar" com "direito humano" e ao mencionar "esporrar", o autor destrói a expectativa de uma sequência convencional. Além disso, ele insere sua assinatura "o Podre", evocando, através da estilização das letras, a presença sutil do nome "Pedro" que compartilha do mesmo “p" de “peidar" em mais uma demonstração de sua auto ironia ao aproximar seu nome próprio de um ato censurado aos “afeitos às normas de etiqueta” como futuramente irá cantar no soneto Flatulento que também está presente no álbum Melopéia. 

O uso de expressões como "Cagar é um ato político" exemplifica a provocação e a transgressão presentes no JORNAL DOBRABIL. Essa frase, escrita com um tamanho de fonte maior, ocupa duas e linha, destaca-se visualmente e desafia a perspectiva poética tradicional, que muitas vezes valoriza a poesia como algo belo e límpido. Ao trazer elementos obscenos e prosaicos em um contexto de repressão da ditadura militar, o autor utiliza o humor e a troça como formas de enfrentar esse momento perigoso da época. 

Dessa forma, a fase iconoclasta de Glauco Mattoso, marcada pela poesia concreta e pela mistura de elementos chulos e transgressores, revela sua postura desafiadora em relação aos padrões estabelecidos e sua busca por uma forma de expressão autônoma e criativa, mesmo diante das limitações impostas pela sociedade e pela perda iminente da visão. O JORNAL DOBRABIL é a obra fundamental na bibliografia de Mattoso, onde seu discurso poético se entrelaça com seu discurso político e sua proposta estética. Seus manifestos, poemas concretos, poemas livres e sonetos convivem com seus temas chocantes e obscenos. É o espaço primordial no qual Mattoso exprime sua iconoclastia, com todas as suas contradições, transgressões e prazeres obscenos. 

 

 

 

Capítulo 2: Fase Podorasta 

 

 

A nova não é casta, nem contrasta 

com velhas anarquias. Só me entrego 

ao pé, onde em soneto a língua esfrego. 

Chamemo-la de fase podorasta. 

 

 

Fase Podorasta 

 

O contraditório m de ser um poeta visual e concreto carregando em seu horizonte a cegueira tem sua resolução com a virada dos anos 90, quando, Glauco Mattoso finalmente se vê diante da cegueira e sobre a qual destila toda sua revolta frente à medicina, aos médicos, durante o programa Provocações conduzido pelo apresentador Antônio Abujamra7. Nesta entrevista, Glauco e Abujamra discorrem sobre as taras, a política e a própria postura do autor em sua vida e sua obra literária. Temos ali também o autor se revoltando, mas também escarnecendo-se da sua cegueira. Tal depoimento, em conjunto com sua profícua produção de conteúdo sobre o fazer poético, sobre a forma e a estrutura da poesia, nos permitirá analisar o Soneto 241 por sua extensão estética, biográfica, formal e sonora. 

Em uma entrevista mais recente, vemos o autor refletindo sobre o mesmo período 

Quando eu fiquei totalmente cego, não é? A 95 ainda já havia Windows 95, já havia um pouquinho de início de tecnologia. É. vamos dizer assim. O engatinhante da internet, não? Dali a pouco no ano 2000, eu já tinha o meu site pessoal construído por outra pessoa. Claro, eu não podia construir sozinho, mas eu já tinha e-mail e já tinha um computador falante. É um sistema desenvolvido pela Universidade Federal do Rio de Janeiro chamado DOSVOX (00:49:48 Mattoso em entrevista a Pinto, Manuel da Costa   2019 - Biblioteca Pública de São Paulo). 

Glauco Mattoso revela uma fascinante jornada de adaptação à perda da visão e suas implicações profundas em sua produção poética. A transição para a cegueira total, no contexto de um mundo que estava experimentando avanços tecnológicos, representa um desafio significativo para qualquer pessoa. No entanto, a maneira como Mattoso enfrentou essa situação é inspiradora e revela a resiliência humana e a capacidade de adaptação. Primeiramente, a citação destaca a importância da tecnologia na vida de Mattoso. O advento do Windows 95 e o "engatinhante" da internet abriram, para nosso autor, portas para novas oportunidades de interação e comunicação. Tal abertura é um processo distinto dos irmãos Campos na década de 70 pois aqui  a visualidade dá lugar à sonoridade, o computador falante de Glauco Mattoso é uma ferramenta fundamentalmente em prol da sonoridade chegando aos ouvidos do Poeta e lhe fazendo o lugar de seus olhos glaucomatosos. A capacidade de acessar a internet, ter um endereço de e-mail e utilizar um computador falante demonstra como a tecnologia desempenhou um papel vital em sua vida após a perda da visão. Além disso, a menção ao sistema "DOSVOX", desenvolvido pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, destaca o papel crucial da acessibilidade tecnológica na vida de Mattoso. Esse sistema permitiu que ele interagisse com o mundo digital de maneira eficaz, abrindo caminho para sua produção poética na rede mundial de computadores . No que diz respeito à produção poética de Mattoso, a citação sugere que a perda da visão não o impediu de continuar escrevendo e compartilhando sua poesia. A criação de seu próprio site pessoal e a utilização de um computador falante indicam que ele encontrou maneiras de superar as barreiras físicas e visuais para se expressar artisticamente. Isso é notável, pois muitas vezes a poesia é associada à visão e à imaginação visual. 

O segundo quarteto do Soneto 241 Ensaístico evidencia sua fase Podorasta.  Tal fase é marcada pela adoção dos sonetos como forma preferencial em sua produção poética após 1995. Os versos deste quarteto trabalham com a ambiguidade entre o pé métrico, que o poeta trabalha com rigor para compor seus versos isométricos e o pé objeto de fetiche do autor. O mesmo ocorre com a expressão língua que em soneto esfrega, mas que também poderia esfregar ao objeto do fetiche. Podorasta é o termo escolhido pelo poeta para traçar o paralelo entre a prática de submeter sua poesia ao crivo da métrica e prática do próprio autor com seu fetiche por pés. Tal momento do autor será analisado a partir do álbum Melopéia: Sonetos Musicados, onde seus sonetos construídos com o auxílio do computador falante são musicados e ganham mais um forte elemento de oralidade, rítmica e sonoridade.  A fase podorasta de Mattoso é, de certo modo, um retorno à poesia antiga que era indissociável da própria música. A figura grega do aedo cego ganha em Glauco uma nova versão se apartando da necessidade da visão como elemento crucial à poesia e o binômio preenchimento e vazio deixa de ser o elemento fundamental para o retorno da conjugação entre o som e o silêncio: 

Você tecla no teclado comum, e eu já tinha experiência, datilografia do teclado, e esse teclado vai te falando, vai te devolvendo a cada tecla você teclar no minúsculo, é uma voz feminina se teclar, com maiúscula, é uma voz masculina, então, você sabe se você está teclando minúscula ou maiúscula e todos os assentos toda, toda a pontuação é falada também. Isso permite escrever e depois ele lê para você. Você tem uma série de comandos que permitem editar o texto (00:50:28 Mattoso em entrevista a Pinto, Manuel da Costa   2019 - Biblioteca Pública de São Paulo). 

O seu método de escrita após a perda da visão é um testemunho da maneira como a tecnologia e a acessibilidade podem superar desafios pessoais significativos. A partir do uso de um teclado comum e um sistema de voz, Mattoso conseguiu continuar compondo e editando seus versos e prosas de maneira independente. O fato de o teclado utilizar uma voz feminina para minúsculas e uma voz masculina para maiúsculas é uma característica interessante, pois permite que ele saiba instantaneamente como está digitando e assegura o controle sobre a formatação do texto. Além disso, a capacidade do sistema de voz de ler todo o texto em voz alta é um recurso fundamental para a revisão e aperfeiçoamento de seu trabalho. A existência de comandos que permitem a edição do texto também é fundamental. Isso significa que Mattoso não apenas escreve, mas também pode corrigir, formatar e refinar seu trabalho de maneira eficaz, tornando-o um escritor produtivo e autônomo. 

Em seu livro, O que é Literatura Marginal, Glauco discorre sobre o tema título propondo que ser marginal é margear dois universos paradigmáticos distintos, conjugar duas semânticas e significâncias que de outro modo não poderiam coexistir. Estar à margem é publicar-se e ao mesmo tempo estar fora do mercado editorial. É construir sua própria poesia e ser questionado sobre o valor de sua poética. É ser vanguarda e ao mesmo tempo retrocesso.  Glauco, apesar de não se dizer marginal em seu próprio livro, cultiva, em sua poesia e fazer poético, o contraditório como uma de suas grandes marcas. Adota a norma culta pré 1940 por rebeldia: 

E aqui as reformas foram feitas artificialmente, foram na base da ditadura, foi no regime do Vargas que eles reformaram na marra, ou seja, não foi uma coisa espontânea e eu, obviamente, não podia concordar com isso, porque eu sou tradicionalista em matéria de literatura, eu gosto de cultivar essas formas mais antigas e ao mesmo tempo, sou rebelde. Eu não gosto de coisas impostas como aconteceu.  As reformas vieram em períodos ditatoriais (00:37:50 Mattoso em entrevista a Pinto, Manuel da Costa   2019 - Biblioteca Pública de São Paulo). 

E mais, rebela-se contra o próprio glaucoma e se lança como um poeta concreto, mas um concreto sujo, marginal: Eu misturei as coisas porque o concretismo, era muito clean, era muito limpo, era muito asséptico, não contaminado pela poesia de banheiro, pela poesia de bordel e não de cordel, né?” E quando cego cultiva o soneto, forma clássica, de estrutura fixa, mas com sua temática fescenina, chula, transgride duplamente os possíveis paradigmas poéticos que poderia se inserir na contemporaneidade. Glauco Mattoso recusa o caminho do verso livre e abraça o metro desagradando, a poesia que se arroga de antissistema, mas repete em 2022 o que era feito como novidade em 1922.  E, por outro lado, não se insere como saudosista do passado ao trazer em seu sonetário o que há de mais ofensivo aos cultores da poesia tradicional. 

O álbum intitulado Melopéia representa uma contribuição significativa da obra do poeta Glauco Mattoso, lançado em 2001,  Melopéia  se coloca à margem das expectativas quando mostra-se parte do projeto poético do autor e não uma deliberação musical de um compositor. Aqui, a poesia não surge como uma forma de fixar um arranjo de um instrumentista, ou uma homenagem de um músico à poesia de outrem que lhe encanta.  Neste projeto, Glauco Mattoso estendeu um convite a uma diversificada gama de artistas musicais para a interpretação de seus sonetos por meio da música. A seleção de músicos abarcou uma ampla variedade de vertentes musicais, abrangendo desde o punk rock, representado pela banda Inocentes, até o funk, representado por DJ Krâneo 

A diversidade musical presente nesse álbum pode ser caracterizada como uma manifestação artística que evoca o espírito da antropofagia, ressoando a afirmação de Tato Ficher, tecladista da banda Secos e Molhados, na faixa de abertura do álbum, que proclama: "Uma antropofagia, até tardia,/ tornou a nossa música salada/ de fruta, nacional ou importada". Tal assertiva ressalta a natureza eclética e sincretista da obra, na qual a música brasileira se alimenta e absorve influências tanto de sua própria tradição quanto de elementos musicais estrangeiros, resultando em uma composição multifacetada que transcende fronteiras e rótulos estilísticos. 

Glauco é, portanto, profundamente paradoxal em sua criação poética. Rejeita, com prazer, as normas de etiqueta como Ayrton Muganaini Jr canta na faixa Flatulento do álbum Melopéia8 Já o poema Ensaístico é cantado9 por Wander Wildner, glaucomattosiano que traz para o “do it yourself” do punk e seus três acordes toda a complexidade de um soneto, não de um soneto qualquer, mas sim um cuja estrutura contrasta virtuosidade quando posto em harmonia com os arranjos propostos pela voz de Wander Wildner.  A música punk é conhecida por sua simplicidade e rebeldia, enquanto o soneto é uma forma poética altamente estruturada e tradicional. A combinação desses elementos opostos ressalta a natureza provocativa e desafiadora do poema. A poesia de Glauco Mattoso nos lembra que a literatura não deve ser uma prisão de regras e convenções, mas sim um campo fértil para a experimentação e a expressão individual. Seu poema "Ensaístico" nos convida a considerar a relação complexa entre forma e conteúdo na poesia, destacando como a quebra de expectativas e a exploração de contrastes podem ser poderosos meios de comunicação artística.  Além disso, a escolha de Wander Wildner, um músico associado ao punk-brega, para interpretar o poema em uma canção, demonstra a versatilidade da obra de Mattoso e sua capacidade de transcender fronteiras artísticas. A música, como a poesia, é uma forma de expressão artística que também pode ser desafiadora e subversiva. A colaboração entre Mattoso e Wildner ressalta a ideia de que a arte não deve ser confinada a categorias estanques, mas pode fluir livremente entre diferentes formas e estilos. 

 

 

 

Capítulo 3: Dos Olhos ao Ouvido 

 

 

Mas nem por isso é menos transgressiva. 

Impõe-se um paradoxo na medida 

da forma e da temática obsessiva: 

 

 

Tomando o segundo terceto do Soneto 241 Ensaístico como fio condutor da análise aqui serão abordados os aspectos formais da produção Mattosiana em suas duas fases: Iconoclasta e Podorasta. Analisaremos como o estilo do autor se adequou aos modos de produção poética tão distintos quanto a poesia concreta e os sonetos. Glauco, em seu JORNAL DOBRABIL, sua maior expressão poética antes de cego faz troça reiterada com as normas, com as regras presentes em cada estrutura a que recorreu para ensaiar sua obra poética: 

Mas a experiência de ter enxergado um pouco foi fundamental, porque aí eu trabalhei um pouco com quadrinhos, com aquela diagramação bem vanguardista de você usar letras numa num espaço de papel e brincar com as letras, fazer bastante jogo, né? Visual gráfico e depois disso, ficou tudo na memória. (00:07:41 Mattoso em entrevista a Pinto, Manuel da Costa   2019 - Biblioteca Pública de São Paulo)  

Para Glauco ter enxergado durante anos foi fundamental, pois isso lhe permitiu trabalhar com quadrinhos e experimentar com a diagramação, especialmente com a utilização de letras em um espaço de papel de maneira vanguardista. Ele destaca a importância de brincar com as letras e criar jogos gráfico-visuais. Após tal vivência, tudo ficou gravado em sua memória, sugerindo que a visualidade teve um impacto significativo em sua criatividade e forma de abordar o design gráfico. 

 

(Mattoso, Glauco, JORNAL DOBRABIL, numero hum!!!, anno xiii!!!) 

 

 

Aqui temos um exemplo de como o poeta percebia a própria tipografia, elemento base de seu pastiche em forma de jornal. Cada palavra deste poema concreto contradiz a recomendação expressa em seu conteúdo semântico. Glauco emula em sua máquina de escrever diferentes fontes tipográficas, diferentes estilos de fonte, caixa alta, caixa baixa, letras em itálico. Constrói assim um anti-axioma do dito em contradição ao visto. A visão contradiz aqui o que se lê, mas ambos coexistem enquanto obra poética. O poema concreto AXIOMA começa com a palavra "APENAS" em letras maiúsculas, enfatizando a ideia de que apenas um tipo de letra deveria ser usado em um jornal. No entanto, conforme o poema avança, cada linha introduz um tipo de letra diferente, uma mistura de maiúsculas e minúsculas, e até mesmo letras em itálico. Isso cria um efeito visual de caos tipográfico, no qual as palavras são distorcidas e se sobrepõem, tornando o texto praticamente ilegível.  A ironia e a provocação do poema residem no fato de que a forma como o texto é apresentado contradiz completamente o conteúdo. O poema se apresenta como um "axioma" que prega a simplicidade tipográfica, mas na realidade, ele faz o oposto, bagunçando deliberadamente a tipografia. 

 O paradoxo de forma e conteúdo é uma das marcas mais fortes da obra de Glauco Mattoso, desde quando assinava proficuamente como Pedro, o podre.  Essa contradição entre a forma e o conteúdo é uma característica marcante da obra de Glauco Mattoso, que muitas vezes desafia as normas literárias e culturais. Ele usa a tipografia como um meio de expressão artística, explorando como a forma visual das palavras pode afetar a interpretação do texto. Em AXIOMA questiona a autoridade das normas e regras linguísticas, ao mesmo tempo em que nos faz refletir sobre como nossa percepção da linguagem pode ser moldada pela apresentação visual: 

A memória visual agora guardou tudo, aí eu reiniciei depois de cego, numa nova fase, aí passou a ser a parte da memória, a coisa importante.  (00:08:04 Mattoso em entrevista a Pinto, Manuel da Costa   2019 - Biblioteca Pública de São Paulo). 

Glauco menciona que sua memória visual guardou tudo o que ele havia experimentado anteriormente, e depois de se tornar cego, iniciou uma nova fase em sua vida. Nessa nova fase, a memória se tornou uma parte crucial e importante de seu processo criativo, substituindo a percepção visual que ele não tinha mais. Isso destaca a adaptabilidade e a resiliência de Glauco Mattoso em sua jornada criativa, mesmo após enfrentar desafios significativos relacionados à perda de visão. É interessante notar como os princípios norteadores de sua poética permanecem em suas diferentes fases. Como a perda da visão o manteve ferrenho em seu apresso não só pela forma, mas também pelo paradoxo. 

Então o metro, a rima como no caso do cordel ou do rap, passaram a ser fundamentais porque eu compunha, e já ia retendo de memória tudo medinho, tudo rimado para facilitar as coisas e isso me reaproximou do classicismo, porque eu era, na fase visual, eu era muito moleque, muito iconoclasta. Eu gostava de desrespeitar as normas, fazer uma coisa bem anti convencional.  À medida que eu fui recuperando a memória depois da visão eu fui revalorizando aquilo que era clássico na literatura, como por exemplo, o soneto. É o tipo de poema mais clássico que existe mais tradicional, com séculos de existência. (00:08:17 Mattoso em entrevista a Pinto, Manuel da Costa   2019 - Biblioteca Pública de São Paulo)  

Mattoso menciona como, após ficar cego, ele passou a valorizar elementos métricos, como o metro e a rima, ao compor seus poemas. Ele descreve sua fase anterior à cegueira total como "moleque" e "iconoclasta", caracterizada por uma abordagem anticonvencional e desrespeito às normas literárias. No entanto, à medida que recuperava a memória após a cegueira, ele começou a revalorizar aspectos clássicos da literatura, como o soneto. Essa mudança é refletida no soneto "Ensaístico", que possui uma estrutura formal, com métrica e rima rigorosas. A comparação entre o trecho da entrevista e o soneto destaca como a perda da visão influenciou a transformação da poesia de Mattoso, levando-o de uma abordagem iconoclasta para uma valorização do classicismo literário. Isso ilustra como as experiências pessoais podem moldar a expressão artística de um poeta ao longo de sua trajetória. Essa evolução na abordagem de Glauco Mattoso em relação à sua poesia, conforme mencionada na entrevista, também é evidente ao analisar o soneto "Ensaístico". O poema, que segue uma estrutura formal clássica de soneto com métrica e rima rígidas, demonstra o retorno do poeta à apreciação de elementos tradicionais da literatura, como o uso do soneto. No entanto, apesar dessa adesão ao formalismo, o conteúdo do poema permanece ousado e provocativo, abordando temas relacionados à sexualidade e à transgressão, como é característico da obra de Mattoso. Isso cria um interessante contraste entre a forma e o conteúdo, evidenciando o paradoxo que permeia sua poesia, como mencionado anteriormente. 

Iremos, pois, analisar a estrutura formal do soneto Ensaístico, concluindo-se que o rigor poético do autor influencia a própria semântica, sonoridade e rítmica da obra MattosianaEnsaístico é um soneto de estrutura clássica, composto por dois quartetos e dois tercetos. Como recomenda Bilac em seu Tratado de versificação de 1905, Glauco Mattoso segue a estrutura temática e estrutural e, portanto, o Soneto em sua primeira estrofe obedece ao pressuposto de ser uma introdução ao tema a ser tratado pelo poema em questão, sua segunda estrofe trata do desenvolvimento, o primeiro terceto é aquele destinado ao ponto de virada temática e pfim a chave de ouro (ou clímax) é o objeto da quarta e última estrofe. 

  

 

 

Conforme podemos notar na Tabela 1.  O primeiro verso da primeira estrofe possui a curva rítmica ascendente devido a sua primeira tônica que recai em sua segunda sílaba poética. O referido verso é de acentuação grave por ter uma única sílaba pós-tônica. É um decassílabo heroico por sua contagem silábica terminar em uma décima tônica e possuir uma sexta sílaba como tônica forte. Entretanto, este primeiro verso possui a singularidade da sua quarta e sua oitava sílaba serem, também, sílabas tônicas e por tal além de heroico o verso também é classificado como sáfico.  

O verso heroico é assim nomeado por ter se consagrado pela poesia épica como, por exemplo, a Epopeia Os Lusíadas de Luís de Camões.  Já o verso sáfico é de origem grega, uma referência à estrutura que a poeta Safo, da ilha de Lesbos, usava para compor suas odes e líricas que louvam o amor, e posteriormente muito utilizado pelo romano Catulo em seus poemas de mesmo tema.  Mattoso, entretanto, não se limita aos preceitos de Bilac ao construir o verso desse soneto. Ao construir um verso que é ascendente, grave, heroico e sáfico ao mesmo tempo, o poeta também satisfaz os critérios de um pentâmetro iâmbico, metro esse consagrado pela tragédia grega de Sófocles e que possui um caráter fortemente musical. Não por coincidência tal pentâmetro é aquele eleito por Shakespeare para seus próprios versos. Tal metro, de origem grega, é assim nomeado pelo uso de cinco pés iâmbicos cujo ritmo é consagrado pela sequência de uma sílaba breve seguida por uma sílaba longa por cinco vezes consecutivas.  

Um verso que ao mesmo tempo é heroico, sáfico e também um pentâmetro iâmbico é uma construção incomum dentro da tradição poética, extremamente complexa e de difícil execução. E através de seu engenho poético Mattoso constrói um percurso rítmico que presta tributo a toda poesia ocidental, desde os gregos e romanos, passando por Camões e Shakespeare, até chegarmos a Olavo Bilac. Tal percurso poético de inegável apuro estético e de domínio métrico o elencaria ao ponto mais elevado do Parnaso. Ainda mais quando durante a escansão dos demais versos do poema percebemos que tal rigor métrico não se resumiu ao primeiro verso, mas que o poeta continuou escrevendo versos que são heroicos, sáficos e pentâmetro iâmbicos ao longo de todos os seus quatorze versos. Mas é justamente aqui que descobrimos o porquê dos versos dizerem em sua terceira estrofe: “Mas nem por isso é menos transgressiva. / Impõe-se um paradoxo na medida / da forma e da temática obsessiva” temos aqui um poeta cuja temática ofenderia sobremaneira os classicistas com suas enciclopédias e manuais, mas que também desconcerta, com seu absoluto rigor formal, a poética contemporânea que se põe contrafeita por qualquer resquício do uso da métrica. 

O paradoxo presente em Ensaístico vai além da mera combinação entre forma e conteúdo. Ele está enraizado na própria identidade do poeta, Glauco Mattoso, que desafia as normas da sociedade e da literatura de diversas maneiras. Mattoso é conhecido por sua poesia que explora temas ligados à sexualidade, ao corpo e à diversidade de gênero de uma forma franca e muitas vezes provocativa. Dentro do contexto literário brasileiro, onde a tradição poética frequentemente se alinha com a seriedade e a formalidade, a poesia de Mattoso se destaca como um desafio aberto às convenções. Ele não apenas aborda questões tabu, mas também o faz com um domínio técnico impressionante, como evidenciado no soneto Ensaístico. 

No entanto, a análise da obra de Glauco Mattoso não se limita apenas à apreciação de seu caráter transgressor. Também é importante reconhecer como sua experiência pessoal, incluindo sua perda de visão, influenciou sua poesia e sua adaptação criativa a novas circunstâncias. Sua transição de uma fase "iconoclasta" para uma fase "podorasta" revela sua capacidade de se reinventar e encontrar novas formas de expressão artística após a perda de sua visão. A memória visual, como ele menciona, tornou-se uma parte fundamental de seu processo criativo. O poeta também nos convida a refletir sobre a própria natureza da linguagem e da comunicação artística. Seus jogos de palavras, experimentações tipográficas e desafios métricos não apenas desafiam as convenções literárias, mas também questionam como a linguagem pode ser usada para transmitir significado e emoção. Ao criar um anti-axioma com seu poema concreto, ele não apenas contradiz as normas tipográficas convencionais, mas também nos faz questionar a própria autoridade das regras e convenções linguísticas. 

 

 

Conclusão: Pedro, o Podre e Glauco Mattoso 

 

 

Na universalidade presumida,  

igualo-me a Bocage, Botto e Piva.  

 Ao cego, o feio é belo, e a dor é vida.” 

 

 

Pedro José Ferreira da Silva termina seu soneto Ensaístico universalizando seu lugar enquanto poeta, um poeta que se iguala ao seu cânone pessoal como Bocage, poeta português da segunda metade do século XVIII, conhecido por seus poemas fesceninos como o Soneto da dama cagando que se inicia com: Cagando estava a dama mais formosa, /E nunca se viu cu de tanta alvura; /Porém o ver cagar a formosura /Mete nojo à vontade mais gulosa!  com um efeito de admiração e repulsa, de elogio e escarnecimento que vemos recorrentemente nos versos de Mattoso. O segundo nome desse cânone é Antônio Botto, poeta da segunda fase do modernismo português, escandalizou a elite conservadora da Portugal da primeira metade do século XX, porém, diferente de Glauco, seus poemas eram mais sutis ao cantar do seu amor homoerótico.  Já Piva é seu contemporâneo e um dos 26 poetas hoje de Heloisa Buarque de Holanda, lançado em 1976.  Roberto Piva compartilha com Glauco do erotismo, pornográfico, escatológico e político em seus versos nessa segunda metade do século XX e lança poemas como os Anjos de Sodoma e Porno-samba para o Marquês de Sade.  

É mister notar que o movimento de construção poética do autor ao longo das estrofes subverte a lógica de reverenciar primeiro seus gigantes (como diria Camões) e então contar sua história, seus gigantes, seu cânone pessoal, surge aqui, logo antes da chave de ouro do Soneto Ao cego, o feio é belo, e a dor é vida. E com essa chave sintetiza-se a obra de Glauco, a beleza está no feio, no contraditório, vida e dor não são opostos, mas sim os mesmos. Glauco Mattoso não diz que o feio é como belo para ele, mas sim que o feio é belo, não há uma comparação não há uma visão sutil ou metafísica aqui. Há em sua obra uma assunção do que gosto hegemônico nega, há uma atração pelo que gosto hegemônico rejeita. o auto escárnio, a autoironia que chama aqueles que o admiram para compartilhar com ele de sua visão marginal e paradoxal da poesia e da nossa própria sociedade. E seu cânone literário é personalíssimo, composto por autores que como ele são os rejeitados, os presos e degredados de todas as épocas como Sade, Gregório e Bocage. São a esses nomes que Glauco presta seu tributo e é neles que se inspira para erguer seus próprios edifícios de rima.  

Com o último terceto de Ensaístico concluímos o percurso poético do soneto que também é o percurso da vida poética do autor, inaugurado em suas edições do JORNALDOBRABIL cujo experimentalismo e profusão heteronômica vimos no primeiro capítulo, seu desenvolvimento e vaticínio que o conduziu da visão à cegueira no segundo capítulo, sua virada formal e sonetista levando seu formalismo à máxima potência no estudo métrico e estilístico feito no terceiro capítulo para chegarmos aqui nesta conclusão. 

 Ao longo deste trabalho percorremos a obra de Glauco sob a perspectiva da visibilidade atravessada por sua cegueira que evidenciou uma poesia que permaneceu fiel à forma e transitou dos olhos aos ouvidos, encontrou na construção formal da poesia elementos para manter sua própria produção poética a despeito das próprias limitações que o seu glaucoma lhe impôs. O poeta glaucomatoso não se intimidou com a imposição dessa doença que lhe retirou a visão como também não se intimidou com os abusos e traumas que sofreu em sua infância ou aos abusos perseguições que vivenciou nos anos de chumbo. O poeta Pedro abraçou a tortura que sofreu, abraçou a perseguição que viveu e por fim abraçou a sua própria doença para fazer-se Glauco Mattoso. Para ser um concretista, para ser um sonetista, um músico e assim compor uma obra poética respeitada e louvada por sua força e capacidade de fazer das palavras o seu maior e melhor instrumento para lidar com sua realidade ária e retornar a ela com humor e escarnio, demonstrando assim a coragem de um covarde. que se esconde além de toda métrica e de toda rima. 

 

Referências Bibliográficas 

 

ALVES, J. M. F. “O homem porno-gráfico: identidade inacabada em Glauco Mattoso”. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. 2015. Dissertação [Mestrado em Estudos da Linguagem]. 

 

Caixeta, A. P. A. (2018). Glauco Mattoso e as “memórias de um pueteiro”: identidade literária como estética de si. FronteiraZ. Revista Do Programa De Estudos Pós-Graduados Em Literatura E Crítica Literária, (21), 109–128. https://doi.org/10.23925/1983-4373.2018i21p109-128 

 

MATTOSO, G. JORNAL DOBRABIL. São Paulo: Edição do Autor, 1965-1966. 

 

MATTOSO, G. Soneto 241 Ensaístico. In: Pornô Chic. São Paulo: Editora 34, 1998. 

 

MATTOSO, G. SONETO 150 TROPICALISTA In. Paulicéia ilhada: sonetos tópicos. São Paulo: Ciência do Acidente, 1999. 

 

MATTOSO, G. Melopeia. [gravação de áudio]. São Paulo: Selo Sesc, 2013. 

 

PESSOA, F. Teoria da heteronímia. Porto: Assírio & Alvim, 2012. 

 

VELOSO, C. Língua. [gravação de áudio]. Rio de Janeiro: PolyGram, 198 

Sedenta Refrescância

Sedenta seden-ta
Sedenta Refrescância
Que quase que qua-se
Que quase desidrata 
língua boca e garganta

Essa sede profunda
Que dá mais e bem mais
Sedenta Refrescância
Sedenta seden-ta
Sedenta Refrescância

Quero beber seu som
através da minha pele
dentro dos meus ouvidos
cravando nos meus ossos
quero seu alarido
sua sonoridade 

sexta-feira, 15 de dezembro de 2023

defesa

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quinta-feira, 14 de dezembro de 2023

Contando nos dedos


Quero ser livre sem amarras e sem regras:
conto e reconto sim os meus versos sem métrica; 
cravo no meu papel sons e palavras às cegas;
faço poemas mil em vaidosa estética.

São segredos senis que a verdade renega,
feito aqueles assim escritos na prática
solta do seu ardil, sutil, que em mim se esfrega
nessa ponta de língua afiada e dramática.

Verso livre? Será sempre meu melhor lema.
Sobre o metro? No canto eu jogo de castigo!
Faço fluxo mental por pura leniência...

Ei! sempre desconfie de quem conta poema,
de quem entra no esquema e faz versos medidos,
que faz da pena uma pena ou mesmo penitência!

domingo, 12 de novembro de 2023

Trilho do Trem

Seu Zé me sirva 
uma dose de dia
da prateleira mais alta
do seu armazém 

Calados respondemos
o que não valia perguntar
batizados sem nome
sem chuva sem flores

Os não ditos de nós
ficaram sem depois
sem sinal de celular
sem pra onde olhar

Seu Zé me sirva 
uma dose de dia
da prateleira mais alta
do seu armazém

a cabeça bate no peito
descompassa maldita
e descarrilha na trilha
errada de Dylan e Raul

Sou cão de duas cabeças
sem eira nem coleira
que errante lhe mira
e lhe admira admita

Seu Zé me sirva 
uma dose de dia
da prateleira mais alta
do seu armazém 

bate o sino
mais uma dose
suas piadas
suas artes

bate o sino
mais um gole
sem gelo
sem analgésico

sexta-feira, 10 de novembro de 2023

Cumplicidade

me fofoca como rádio 
mas de todos os babados
os melhores são seus lábios
que me felam tão molhados

sospecho

Sospecho:
sus pechos
son pequeños
solo para
si plantear 
en mis lábios

segunda-feira, 23 de outubro de 2023

Sextilhas com mote e rim (Parte I)

modernoso e não moderno
passageiro e não eterno

-Eclode a modernidade:
da Belle époque o delírio,
do entre guerras todo horror!
Feito sonho liberdade
desafia regra e fio 
da métrica e escandor.

Poeta em noite intranquila
teme o metro e alucina 
nas sílabas e nas tônicas.
Moderníssimo delira:
-Construirei minha sina
minha torre babilônica!

-Sem mais rima! A novidade?
Eis aqui: Seu Assonâncio,
Compadre Aliterador.
-Amigos desde a helenidade
e louvados no prefácio
do tal modernizador...

Não aquele que se grila
duas sextilhas acima
mas um dos bons, sem irônica
fala, pois ele vitíma
o gosto burguês e nina
sua revolução jônica 

modernoso e não moderno
passageiro e não eterno

Sim, ele mesmo, um Andrade
-Mas qual dos salafrário?
-O de gente comedor? 
-Não não, esse é o Oswald! 
-Seria Carlos ou Mário?
-É Mário, o prefaciador

'teressantíssimo gira:
a Paulicéia arruina
a arrogância indômita
e detona e desvaira
e desnuda e desatina
toda elite em sua crônica 

aparta a rima com vontade
que preenche seu vazio,
contrafeito rimador;
com pés de latinidade,
fonética do vizinho
aplicado escutador.

modernoso e não moderno
passageiro e não eterno

Moderníssimo revira
desconhece tanta prima
Afônica e a Fônica
Bilabina, Dentina, Vela
Nasalina, Plosivina
Ladentina e Glotônica

-Por erro e não vaidade
dumas filhas doutro tio 
esqueci, mas tenho amor
nas duas: Alplade e Plade
Cada qual com seus filinhos 
presam ao versejador

Carregam toda catira 
desde as colunas heleninas
ditam o ritmo e a tônica 
de cada verso que brilha
no salão e na cantina
pra tristeza da platônica

modernosa e não moderna
passageira e não eterna

sexta-feira, 20 de outubro de 2023

quarta-feira, 11 de outubro de 2023

Concerto

Na música de gênia lhe provo
e vejo meu receio ruir
na harmonia me recrio e inovo
sou eu aluno do seu porvir

eu vim acordar o sol de novo
bem depois do frio onde dormi
no calor da vida me renovo
canto cada vogal a sorrir

Lhe guardo no som e na harmonia 
sou vivo nesse nascer do dia
sou vivo feito de sede e fome

Sou ainda poeta enganador
em nove sílabas meu amor
embalo sem dizer o seu nome

sábado, 7 de outubro de 2023

Cantiga do mar

Trago numa rede
sede d'água doce
fome dos abraços 
de quem bem me quer

Pescador do rio
fiz o meu caminho 
pescador do mar
feito fui marujo 
hoje no navio
trago peixe e fruto
desse mar salgado

Trago numa rede
sede d'água doce
fome dos abraços 
de quem bem me quer

Meu irmão nas águas
doces, nossa casa
cuida com carinho
cuida de mainha
cuida de painho
que já vou voltar
desse mar escuro

Trago numa rede
sede d'água doce
fome dos abraços 
de quem bem me quer

Meu amor do porto
vem você pro cais 
vou comer contigo
faz a cama e guarde
guarde dia e noite
seu chamego calmo
pro meu mar bravio

sábado, 9 de setembro de 2023

Xepa

Sempre fui da xepa, da promoção e pechincha, comprei meu coração na barraca de um e noventa e nove. Mas meu peito e pulmão, pobres e expropriados, fizeram fiado pendurando a conta pra minha garganta pagar sob protestos. Por solidariedade a boca fez greve não queria o novo e vermelho inquilino...piquete montado, dentes trincados... mas a mão furou, pelega, não era de esquerda. Furado o piquete o coração caiu na barriga, burguesa, de tão gorda se fez de sonsa e não quis devolver, foi briga das feias, minhas velhas veias tiveram que intervir... GREVE GERAL e o general da cabeça, prefeito não eleito do meu corpo, entrou em febre, uma convulsão social. Reintegração de posse, biles, vômito e rebordose, mitocôndrias em pânico ouviam a internacional. Como latifúndio, improdutivo, numa noite fui tomado por uma princesa que se fez realeza socialista, encampou meu corpo e botou meu coração no peito, deu um jeito nos grevistas, botou de regime minha barriga. E todos, todas as partes, pedaços, ossos, órgãos, células , culturas bacterianas, tártaros superbacanas puseram abaixo a superestrutura. Era revolução, de agora em diante. Todos, todos teriam o direito, Inalienável, ao pão, aos beijos dela e... é claro, à poesia.

Xepa

Sempre fui da xepa
da promoção e pechincha 
comprei meu coração
na barraca de um e noventa e nove

Mas meu peito e pulmão 
pobres e expropriados
fizeram fiado
pendurando a conta 
pra minha garganta
pagar sob protestos

Por solidariedade 
a boca fez greve
não queria o novo
e vermelho inquilino 
piquete montado, 
dentes trincados
mas a mão furou
pelega, não era de esquerda

Furado o piquete 
o coração caiu
na barriga 
burguesa 
de tão gorda
se fez de sonsa 
e não quis devolver

foi briga das feias
minhas velhas veias
tiveram que intervir 
greve geral e o general
da cabeça, prefeito 
não eleito do meu corpo
entrou em febre,
uma convulsão social

Reintegração de posse
biles, vômito e rebordose
mitocôndrias em pânico
ouviam a internacional
quando o latifúndio
improdutivo

Numa noite
fui tomado por uma princesa
que se fez realeza socialista 
encampou meu corpo
e botou meu coração no peito
deu um jeito nos grevistas
botou de regime minha barriga

E todos, todas as partes
pedaços, ossos, órgãos, células 
culturas bacterianas, tártaros superbacanas 
puseram abaixo a superestrutura

Era revolução,
de agora em diante,
Todos, todos 
teriam o direito
Inalienável 
ao pão,  
aos beijos dela
e... é claro, 
à poesia.

sexta-feira, 8 de setembro de 2023

Três pontinhos intermitentes

Ela curiosa fada
e eu nada, nada digito,
digo ou repito de pronto
e lhe espanto no poema
pruma prima pescadora,
pecadora, principesa

É alteza que habita o peito
dum jeito e dum carinho
que me desalinho e insisto
em fazer disto meu verso

O mais perverso convite
que insiste em poesia,
magia e prosa, de tanto,
mas tanto, tanto aconchego
que me chego de dentro
e de fora de seu beijo.

Que afago, abraço, no enlaço
pois lhe laço nessa cilada
cantada no clima de três
pontinhos intermitentes

quinta-feira, 7 de setembro de 2023

Fruto Mineiro

Sou daqui
não porquê nasci
mas porquê cresci
nas férias, feriados
aniversários e 
campanhas
da barragem,
das eleições,
de saúde,
e tantas mais 

Onde minha vó
me levava
à feira de sábado
e antes de chegar
parava pra conversar,
dar conselhos,
passar bilhetes,
curar joanetes
e calos ou caçar um carro,
um jeito de tratar fora
seus aflitos pacientes 

Vó demorava
a manhã todinha
pra caminhar
as duas quadras
de casa até a praça da feira 

Onde aprendi
a andar à cavalo,
à beira do rio, nas trilhas 
dos mascates e tropeiros 
e pescar no Rio Setúbal

Onde ouvi
sobre os trilhos
da Bahia-Minas 
que saia de Araçuaí
até Caravelas 
e seu fim num desatino 
dos milico tontos 
que desde pequeno
aprendi a não gostar

Onde minha vó
me deu o cavalo
que chamei de Rambo
mas que era o Jardineiro
pra todo mundo da fazenda
(Rambo, que nomebestameudeus!)

Onde fui pra escola
estadual Nossa Senhora de Fátima 
e fiz amigos, corri perigo
"Esse menino vai cair do cavalo!"
E eu nunca, nunca cai cavalgando
à toda velocidade ouvindo os cascos 
batendo nos paralelepípedos

Onde minha vó
me ensinou 
da Igreja,
dos padres,
das freiras...
me ensinou
seu ateísmo
não praticante 
e que tudo 
é política, luta,
cuidado
e também amor!

Onde dei meu 
primeiro beijo
onde aprendi 
a amar
o queijo, 
a rapadura 
e o puxa
(que eu puxei achando que era
uma ordem e não o nome)

Genipa americana, o fruto
Jenipapo de Minas, a cidade
são só nomes 
nomes insuficientes
para descrever meu amor
meu amor por um lugar
um lugarejo, distrito
e agora município
que é parte de quem sou
desde sempre.

quinta-feira, 17 de agosto de 2023

Duas teclas

Durante as bodas del Rei, o Pianista teve sua estréia, entretanto seu fá sustenido soou em si bemol. Doeu-lhe os ouvidos, desesperou seu peito, mas, obstinado, tocou até o fim, mesmo malogrando seu lado direito. Os aplausos no palco e os elogios da imprensa não impressionavam. Tempos depois declinou, desconfiado, o convite de tocar durante o debute da Princesa.

Decepcionado sentiu o seu ocaso de pianista, todos mentiam, os incentivos eram só chistes refinados pelo seu si bemol em falso. Sentia-se traído e por tal renegou sua mão direita. Deitou-se do mundo dos dedilhados, cordas, baritonos e sopranos. Entretanto, não deixou-se afastar dos palcos e por, destino e glória, tornou-se Esgrimista canhoto. 

Dedicou-se ardorosamente, demostrou talento, derrotou oponentes e de florete empunhando, pela diligente mão esquerda, voltou aos palcos e palmas. Envaidecido, não notou os olhos da Princesa soprano sobre si. Ela preservava no peito aquele si bemol que só um gênio poderia encaixar dentro duma desgastada melodia.


terça-feira, 1 de agosto de 2023

Não relevo o relevo

Sem erro, sem risco não 
há vida plena, só plana
e ser plano nunca fez
parte dos meus planos 

segunda-feira, 31 de julho de 2023

Década passada revisitada

Dourada taça sobre meus estudos
quebra-se vilipendiada e o sol
inda tarda deixando-me só e mudo,
feito terra no centro dum atol.

Me sopra seu sabor, sorrateira succubus
me mistura o dourado e doce do álcool.
Sinto o sonho perdido entre apuros
sou eu barco em mar ermo sem farol?

Suspendo-me: profano ou divino?
já os cacos eu recolho numa lâmina,
de abrir cartas, reluzindo prata;

na mesa os versos tingidos de vinho
e dentre ouro e prata, duma infâmia
brota a gota de sangue insensata...

quinta-feira, 27 de julho de 2023

Flor de esquina

De terno branco, bem cortado, caminhou pela rua, como se fosse me atravessar, suspeitei que ele sequer me via, mas olhou-me nos olhos, passeou pelos meus cabelos, desceu por meus lábios e enquanto sorria me secou o decote. 

Desviou, flanou, sem perder seu sorriso. Senti seu perfume, dama da noite. Distante atendeu o telefone: "Oi amor, não paro de pensar em você!" Disse, tão sincero, que duvidei da lembrança de sentir seus olhos sobre mim.  Poucos passos depois, eu nem sabia mais aonde ia. Contrariando-me, virei-me para vê-lo.

Decerto que pela indecisão só vi seus sapatos, polidos, na esquina e eu, no meio da rua, girei para alcançá-lo. Cheguei e só vi aquela flor com a bala mordida nas pétalas. Venci a vergonha, cheirei e era o mesmo perfume. A meia bala, com sua saliva. era para mim.

quarta-feira, 26 de julho de 2023

Esculpida pois sim, eterna porém.

Orgulho de seu escultor. Ela, estátua de mármore, bela, belíssima e, também, muito emotiva. Mas sempre, sempre, impassível, insensível no reter de suas lágrimas. De fato, esforçava-se para contê-las, como um dique, suportava dor, angustia, desespero como se nada fossem.

Obstinada, calava tudo. Não se demovia pela ofensa proferida por um bêbado, nem por uma criança que lhe escalava tal mangueira em pleno verão, nem corava o rosto por um casal afoito que lhe usava de beco escuro, sequer via o sem-teto que fenecia aos seus pés pelos rigores do inverno. E nem mesmo um pedido de casamento lhe afetava os olhos.

O motivo? Seu peito de mármore guardava a razão: eternidade. Afinal suas lágrimas ácidas, caso irrompessem de seus olhos, esculpiriam sulcos profundos, tal leito de rio, em sua face e desaguariam no lago de seus lábios. Dolorido? Sim, mas eterna porém.


terça-feira, 25 de julho de 2023

Escolástica

Ela não teve um primeiro amor no jardim de infância, não paquerou dentro da escola, no colégio, não cultivou amores platônicos pelos professores.
 
Entretanto, era zelosa por seus livros, recolhia cada traça e lagarta da biblioteca e, uma a uma, as engolia inteiras.

Estava certa que não tardaria para, enfim, sentir o farfalhar de asas das tão faladas borboletas em seu estômago.

terça-feira, 20 de junho de 2023

Perdi

Eu perdi
        perdi
eu perdi o último poema que lhe fiz

os versos estão
na ponta da língua
lambendo meus molares
dançando nos caninos
procurando num canto
num canto qualquer
o resto do seu sabor

Eu perdi
        perdi
eu perdi o último poema que lhe fiz

aquele que lhe disse
jurado, extasiado
ao pé do seu ouvido
enquanto ainda sentia
o tremor de suas pernas
enquanto ainda ouvia 
o arfar de sua boca

Eu perdi
             perdi
eu perdi o último poema que lhe fiz

Estou aqui
como quem relembra o gosto do doce de sobremesa
horas após o jantar
eu não quero escovar meus dentes 
eu não quero pentear minha mente
na procura do verso perfeito
que lhe disse confessado e arrebatado

Eu perdi
         perdi
eu perdi o último poema que lhe fiz

Eu quero
quero o poema inteiro
pronto, perfeito e acabado
quero ele na minha boca
quero ele no seu ouvido
        quero
eu quero de novo o gozo que me fez poesia

domingo, 11 de junho de 2023

Prato Frio

Como deixar de cumprir
a promessa que você
fez pro seu eu do passado
num momento de rancor?

quinta-feira, 8 de junho de 2023

Em azul

 


ESCREVORESCREVOESCREVORE
SCREVOESCVREVOREESCREVO
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SCREVOESCVREVOREESCREVO
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SCREVOESCVREVOREESCREVO
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SCREVOESCVREVOREESCREVO
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segunda-feira, 5 de junho de 2023

Composição

O poema deita-se 
e sobre ele a música
cavalga no pelo
e lhe faz piano
no toque uma nota
da pele macia
perfeito contralto 
língua e palato

A música cavalga
sobre o poema
geme ele barítono
arfa ela soprano
que quebra o verso
parte a partitura
sem qualquer pudor 
candura ou clave

Música e Poema
metonímia a dois
bemol sustenido
que bota no ritmo 
de quatro o compasso
alitera o si
escande seu sol
e ressoa sua rima

segunda-feira, 22 de maio de 2023

Vale o risco

Qual escolha tem
a exibicionista
no meio do risco
se o seu público
lhe arranca do púlpito
morde seu púbis
lambe seu seio
agarra sua bunda 
e vira seu algoz

Devora a fome
sem nome ou voz
provoca a carne
geme e se entrega
pelo capricho 
do passo em falso
que torce seu pulso
põe de joelhos
e lhe faz beber 
cada gota merecida

Rebola plugada
lambuza seu cio
regojiza em vermelho
pra ser devorada
tomada no tato
de pelo com pele
atada no arremate
abate e gozo
feita puta vadia
acaricia a mão 
que lhe doma
em sua própria
casa e cama.

Sem hora na janela

Sonhava eu na janela entediada,
rezando baixo pro meu próprio santo,
de olho na rua tal quem não quer nada...
quando vi, tremi louca pelo encanto!

Então quis eu ser mesa para tantos:
comida, banqueteada e devorada
e mais, quis eu servir-lhes com meus prantos...
currada, laceada e arrombada!

Gabava-se ela, na matilha suja,
de falo em falo, vi aquela cadela 
latindo e sentia mia sineta rija...

Sofria? Era fato, mas a inveja
brotava no meu rosto e sem sobeja
eu babava pelos ganidos dela!


segunda-feira, 15 de maio de 2023

Passeio paraíso

Estou eu no paraíso:
dos dedos entrelaçados, 
na boca meu puro riso
e vestido bem florado.

Estou eu no paraíso:
do passaro e seu cantado,
com meu gemido bandido,
que me acabo e aterriso...

Estou eu no paraíso:
dos meus joelhos ralados, 
do meu ninho bem plugado,
onde tremo sem aviso!

Estou eu no paraíso:
dos meus passos bem contados,
no seu carinho querido,
que lhe lambo até seu piso...

Estou eu no paraíso:
do pescoço encoleirado,
do meu orgulho preciso,
que lhe dá todo cuidado!

quinta-feira, 27 de abril de 2023

Cavalga-me

Cecília, noite toda úmida de teu mel...
dedilha, com amor, o cobiçado anel.
Enamorado, te faço um convite galante:
teu esfíncter ao redor de minha glande!

Cavalga-me! Do teu cavaleiro fiel,
será dama do lago ardente em corpo e véu.
Eu, afogado por ti: cócix, virilha e ventre,
navego na saliva atrás, entre e de frente!

Trago goles de vinho adivinho teu ato:
que me fala e faz e no falo me fela
que deseja vadia meu dulcíssimo gozo!

Te faço no meu mimo um deleite e maltrato:
teu tremor, teu gemido e grito me celebra
na fome que fartado em ti enfim me repouso...

terça-feira, 18 de abril de 2023

Me toca

Ela  puxa pela vista
paro, penso e me pergunto
pela mais bela passante 
que Baudelaire jamais veria

Ela está aqui, nos trópicos
de outono tão quente
de verão quase infernal
aqui a passante é Preta

Ela seu piano toca 
numa multiplicidade
como alguém feliz que dança,
e brinca pronta pra próxima
 
Ela tem o tempo certo
feito de Poesia e Música
nas assonâncias e versos
co'a Melodia alinhavada

Ela é sim minha cidade
tão mais bela que Veneza
ou qualquer das muitas outras 
que conta e canta Calvino

Ela toda é Musa e Música 
Musicista? Não! Metrópole
cujo ser confunde bem  
meu estar co'encantos e acordes 




terça-feira, 4 de abril de 2023

Memória,

Tenho-te tentado
mas é que aí dentro
não cabe mais tanto
do quê já te coube
no peito ferido

Já não cabe nada
que só bate o tempo,
teu tempo, contado,
medido, preciso
e cronometrado.

Conta quanto tem
de tempo no tempo,
conta do relógio
quebrado no quadro
do retrato antigo.

Contempla o ponteiro
parado no tempo
a volta não feita
o atraso cobrado
marcado na seta

Tá, bate teu ponto
retira tua meta
nem tenta tua sorte
conserta na certa
ou mente que não 

segunda-feira, 27 de março de 2023

a velha, a lagarta, a caveira e a borboleta

A morte é vida
o fim, começo

O novo devora
o velho transmuta
num círculo sem
começo ou fim

E isso é belo

segunda-feira, 20 de março de 2023

Qualquer dia desses

Banho, cama, cerveja
dividiria fácil com você
qualquer um dos três

terça-feira, 28 de fevereiro de 2023

De gênia

Adoro seus dreads
por entre meus dedos
afago e me deixo
beber dos seus beijos

Adoro seus dedos
tocando meus pêlos 
que me faz piano
desses seus carinhos

Será essa poética 
feita corda e guia
de canção macia

Serei sua música
seu ritmo, cadência
de toda indecência
 


sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023

Sátiro Selvagem

Sou seu sátiro selvagem
Sou seu sáfico sutil

Sou seu sátiro selvagem
salteando seus sonhares
Sou seu sátiro selvagem
sim, sou solitário sábado
Sou seu sátiro selvagem
safo, sade, sensualíssimo

Sou seu sátiro selvagem
Sou seu servo sadeano

Sou seu sátiro selvagem
serpenteando sepulcros
Sou seu sátiro selvagem
sombrios, sutis soluços
Sou seu sátiro selvagem
sem sorriso satisfeito 

Sou seu sátiro selvagem
Sou seu sulfi salivante

Sou seu sátiro selvagem
salivando sensuais
Sou seu sátiro selvagem
sanhas sofregas sativas
Sou seu sátiro selvagem
seduzindo assim seu sexo 

Sou seu sátiro selvagem
Só sou somente sou sempre
sem sutilezas sou só 
só seu sátiro selvagem 

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2023

bucólico

Você acha que rola
de trocar o seu mamilo
por essa acerola?

terça-feira, 6 de dezembro de 2022

Na copa, cozinha ou quarto

Quisera eu ser seu Brasile
 você minha Coreia
e no deserto, num ato
lhe meter de quatro

quinta-feira, 1 de dezembro de 2022

Pós foda é foda

Pós foda é foda
mandei no zap a real

é que meu pau
já tá com saudade 
do seu cuzinho

Paixão de pica é pica
nem fez um docinho

e o meu cuzinho
já tá com saudade 
do seu pau 

segunda-feira, 21 de novembro de 2022

Haiquase 404

plantas de plástico
fazem fotossíntese
com luzes de led

segunda-feira, 14 de novembro de 2022

PARA UMA DIALÉTICA DOS PRAZERES

Lhes tomo como um escultor e não 
como um pintor, pois não tenho eu
uma tela em branco, um terreno
baldio, sem vida. A minha lavra
é de pedra, com seus veios, ranhuras,
rachaduras e sua própria forma pede;

Pede por, uma nova forma, um novo
modo de cantar suas dores e feridas.
Envolvo, justamente, onde lhes sinto
os seus mais profundos fascínios.
Pois lhes testo as próprias defesas
e lhes ato em seu próprio gozo!

Para as que desejam a prisão;
cordas, algemas e amarras.

Para as que anseiam a humilhação;
abusos verbais e ordens públicas.

Para as que tremem na dor;
meus chicotes e meus tapas.

Para as sensoriais, meus pés;
minha venda e minha vela.

Para as que tudo é pouco;
o meu nada e nada mais! 

sexta-feira, 4 de novembro de 2022

Poema retirado das mensagens do zap

a ninfo me confidenciou:
mamei um peão meses 
atrás no terreno baldio

Ele
trombei com ele 
numa rua escura
nos olhamos
e saí andando

Delicioso
de uniforme e coturno
indo pra casa
vindo da fábrica
o fdp tava delicioso

Negão
Não teve nem diálogo antes
ele entendeu e veio atrás
sentindo o cheiro do meu cio
fomos parar num mato

Pentelhudo
cheirão gostoso de pica 
me matando de tesão
tirei o leite dele
todo na minha boca

Poema Autoral

No Brasil de cada 100 poetas que publicam
96 morrem sem viver dos 10% pagos pela editora

No Brasil 
de cada 100 poetas que publicam 
96 morrem sem viver dos 10% pagos pela editora

No Brasil
de cada 100 poetas
que publicam 
96 morrem
sem
viver dos
10% pagos pela editora

sem viver dos 10% pagos pela editora
sem viver dos 10% pagos pela editora
sem viver dos 10% pagos pela editora
sem viver dos 10% pagos pela editora 

quinta-feira, 27 de outubro de 2022

Alusivo

Ah ela, a tal língua 
que lhe lambeu 
loucas maledicências 
de loucuras, malfeitos, 
malfados e maldades

Ela, língua, logrou 
eloquente êxito
e meu lirismo 
está de luto

Não lhe olharei linda
meus olhos são lágrimas
cada cheiro cada palavra
de seus lábios vermelhos 

censuro meu verso
censuro os sonhos
vejo os demônios
que nos deram 
num buquê de flores
é primavera!

Você reluz
meu amor
meu gesto
meu ato
mas não
não mais
nada

quinta-feira, 20 de outubro de 2022

Também é poesia

Quanta angústia cabe
dentro dum poema
Cada dor num verso
Cada drama numa estrofe

Mas o quanto de verdade
Eu lhe confesso em verso
Eu lhe confio em prosa
e quanto goza meu martírio
daquilo que não digo?

Carrego culpas tamanhas
temperadas com sonhos
desfeitos pelos meus erros
não preciso do seu dedo
em riste acusando tudo
tudo aquilo que sei
e já cansei de me mentir

Já não leio como lia
páginas e mais páginas
madrugada a dentro
porém, pro meu tormento, eu não durmo
passo em claro em silêncio
sem urro no meio da noite
guardo a dor bem guardada
num prateleira de mágoa e melancolia

Será que um dia eu esqueço
dessas culpas que só eu sei
e passo o bastão desalmado
prum desavisado mais romântico?
Será que um dia eu esqueço
de carregar esses ossos
e guardo num armário
como todo mundo?

terça-feira, 4 de outubro de 2022

Faço música de sua letras

Oh...  quanto delírio 
que quando lhe penso 
deságuo eu no intenso
toque que dedilho

tal meu instrumento 
que os dedos eu trouxe 
pro seu sexo doce
que inunda sedento

jorra feito fonte
de sujos pecados
numa imunda mente

De anjos safados
que gozam defronte 
o meu dedilhado 

quinta-feira, 22 de setembro de 2022

no colo

de bruços
plugada
levando
palmada

sexta-feira, 16 de setembro de 2022

Cecília Filósofa

Saiba: nem tudo vem dos descaminhos,
porque também há os vícios dos vinhos.
Afinal, nem o mundo é só impurezas...
também competem muitas malvadezas!

Saiba, nem serão sempre esses espinhos...
há ferrões nos melhores dos caminhos.
Pois que nem tudo é sempre uma tristeza,
sobra também tais fomes e pobrezas!

Pequena, são mazelas da virtude,
das que infligem tormentos amiúde,
dignas de quem só o bem deseja e faz,

Sei que admira esses bêbados devassos,
amantes, libertinos, cordas, laços 
tudo querem assim mais que demais


sexta-feira, 2 de setembro de 2022

hai-quase explicito

jorro natural
recolhido por seus lábios
saliva-me o sêmen 

sábado, 16 de julho de 2022

Minha orquestra

Lhe dedilho o sexo
perfeito piano,
Dessas suas nádegas 
própria percussão,

Da boca e dos lábios
o meu saxofone
E seu corpo inteiro
o meu violão

Qual o seu gemido
em dó sustenido?

de lado, de quatro
de joelho o retrato?

que no ré lhe trago 
pro perfeito estrago

sexta-feira, 15 de julho de 2022

Análise da Canção Ouro de Tolo de Raul Seixas


 Raul dos Santos Seixas, cantor e compositor baiano, nascido no ano da bomba atômica se definia como um canceriano sem lar. Era pois, um cronista ambíguo e contraditório em muitas de suas composições que aqui analisaremos sob a perspectiva econômica de sua época, O Brasil da Ditadura Civil-Militar ocorrida a partir do ano de 1964 cujo próprio término em distensão lenta e gradual Raul como seus espírito de mosca na sopa duvidava quiçá só para incomodar, quiçá para apontar ali uma ferida, um incômodo que seria mais conveniente ignorar.

O caráter monetário, concreto da natureza de seus versos  acontece desde o título de sua canção “Ouro de Tolo” do álbum Krig-ha, Bandolo! lançado no ano de 1973 durante o chamado Milagre econômico brasileiro período propagandeado pela Ditadura como de enorme pujança e prosperidade para o país.  Mas o Eu-lírico do autor inicia seu canto dizendo que:

“Eu devia estar contente

Porque eu tenho um emprego

Sou o dito cidadão respeitável

E ganho quatro mil cruzeiros por mês”


O devir, o dever ser inaugura o poema contestando a ética protestante da realização pelo trabalho, pois põe em cheque a certeza que o indivíduo respeitável por ter um emprego e uma renda, tenha em situação de alteridade a sua auto realização.  Na estrofe subsequente:


“Eu devia agradecer ao Senhor

Por ter tido sucesso na vida como artista

Eu devia estar feliz

Porque consegui comprar um Corcel 73”


O elemento religioso se impõe novamente e a realização da rima entre o mês e o sententa e três novamente demonstram como valores de realização primeiro o salário nominativo e em seguida um carro novo, do ano do lançamento do álbum denotando um sucesso financeiro que deveria ser garantidor do seu próprio contentamento e se esse devir não se realiza, se o eu-lírico não canta seu agradecimento, há uma dissincronia entre a expectativa capitalista de realização e o próprio anseio humano.


“Eu devia estar alegre e satisfeito

Por morar em Ipanema

Depois de ter passado fome por dois anos

Aqui na Cidade Maravilhosa”


Nesta estrofe impera novamente o devir e o incomodamento do eu-lírico se expande para um dos bairros símbolos do crescimento nesse período de um novo Rio de Janeiro, bem distinto daquele Rio antigo das crônicas do bruxo do Cosme Velho. Se Laranjeiras, Glória, Botafogo, Lapa, Flamengo são o pano de fundo das narrativas machadianas por serem os espaços frequentados pela elite carioca de sua época. Aqui, na obra de Raul seixas, Copacabana, Ipanema e Leblon assumem esse papel em um Rio de Janeiro que não é mais capital do Império ou da República, mas que mantém-se ainda como a meca dos artistas, para qual todos que querem colonizar seu espaço no mundo das artes devem migrar. E mesmo após passar fome por dois anos na Cidade Maravilhosa, o sucesso não basta para extinguir a alteridade do devir do eu-lírico. E o que era apenas devir se afirma como negativa nas duas quadras a seguir:

“Ah! Eu devia estar sorrindo e orgulhoso

Por ter finalmente vencido na vida

Mas eu acho isso uma grande piada

E um tanto quanto perigosa

Eu devia estar contente

Por ter conseguido tudo o que eu quis

Mas confesso, abestalhado

Que eu estou decepcionado”

A vinculação da felicidade ao sucesso financeiro apregoado pela ética capitalista é, para o eu-lírico uma piada, e pior, uma piada perigosa. Pois, apesar de ter conseguido tudo que quis é com espanto que ele se percebe decepcionado com essa promessa.  a partir dessas estrofes a uma mudança no tom dos versos pois o artista decepcionado deixa de apenas narrar o seu devir para lançar outras dúvidas e explicitar diretamente o seu sentimento de falta, onde as recompensas e realizações ofertados pela sociedade capitalista não  são o bastante para que ele se sinta pleno.

“Porque foi tão fácil conseguir

E agora eu me pergunto: E daí?

Eu tenho uma porção

De coisas grandes pra conquistar

E eu não posso ficar aí parado”


Neste momento de virada da canção, quando o compositor troca as quadras por uma sextilha vemos um eu-lírico que abraça a incongruência, o contraditório que não cabem no estreito espaço ético da sociedade brasileira que sob o milagre econômico que ao mesmo tempo oferecia carros do ano para o artista, que relembra a fome na Cidade Maravilhosa, mesma fome que matou mais de meio milhão de pessoas do mesmo pais na Grande Seca de 1970. E o questionamento “e dai?” remete ao imponderável, o abstrato que não cabe em 4 mil cruzeiros por mês, que não se concretiza em um corcel 73 e nem se negocia com vencer a fome tão distante de suas própria terra. E assim, esse eu-lírico se distancia daqueles protestantes weberianos que vão ao novo mundo fundar o capitalismo através da ética do trabalho.

“Eu devia estar feliz pelo Senhor

Ter me concedido o domingo

Pra ir com a família no Jardim Zoológico

Dar pipoca aos macacos

Ah! Mas que sujeito chato sou eu

Que não acha nada engraçado

Macaco, praia, carro, jornal, tobogã

Eu acho tudo isso um saco”


Após a sextilha o compositor retorna ao esquema de quadras e enquanto nas quadras iniciais o eu-lírico aparecia em um questionamento do seu devir, no que devia ser mas não se realizava, sem contudo, expressar seu contentamento, neste par de quadras vemos  a tensão da primeira quadra ser resolvida na segunda. O devir da primeira é negado em seguida. e retoma os elementos das quadras anteriores quando do terceiro verso da segunda estrofe. Pois nem os macacos do Jardim Zoológico, nem a praia de Ipanema e muito menos seu corcel 73 aliviam o vazio que não se preenche com as recompensas por ser “um dito cidadão respeitável”

“É você olhar no espelho

Se sentir um grandessíssimo idiota

Saber que é humano, ridículo, limitado

Que só usa 10% de sua cabeça animal


E você ainda acredita

Que é um doutor, padre ou policial

Que está contribuindo com sua parte

Para o nosso belo quadro social”


Pela primeira vez o eu-lírico se dirige para o interlocutor, despejando seu próprio descontentamento no outro que vê como um espelho, como também pertencente ao “nosso belo quadro social”  Elenca àquelas profissões fundamentais nessa estrutura, ao mesmo tempo que os lembra que são animais, seres limitados e que a despeito das conquistas, das contribuições ainda permanecem carentes de significação, de objetivos maiores que só se realizam dentro das expectativas limitadas e limitantes dessa sociedade.  E tal processo acaba por  guiar o interlocutor para o fechamento da canção.

 

“Eu é que não me sento

No trono de um apartamento

Com a boca escancarada, cheia de dentes

Esperando a morte chegar


Porque longe das cercas embandeiradas

Que separam quintais

No cume calmo do meu olho que vê

Assenta a sombra sonora dum disco voador”


Para se distinguir dos seu interlocutor o eu-lírico nega a posição do dia de domingo, de ser mero espectador de sua vida conquistada, de suas próprias pequenas e burguesas realizações, refere-se a “um apartamento” de maneira indefinida pois a vida de seu habitante é igual e genérica como a de tantos outros habitantes, cidadãos respeitáveis que dormem em seus sofás de boca aberta sem mais expectativas, sem sonhos de mudanças. Mas em sua última quadra o eu-lírico canta acerca do imponderável, de um lugar longe do sonho burguês de uma casa com cerca e quintal, tal qual um filme americano. Fala daquilo que está na margem da visão, em seu ponto mais calmo, uma sombra sonora, uma sinestesia que torna o extraterreno a solução para quando a realização protestante da redenção pelo trabalho oferece apenas o material mas não desfaz o mal-estar existencial. 

Sob a égide de um Milagre econômico que só satisfaz uma pequena classe média, o Brasil de 1973, tem fome, tem miséria, tem tortura e opressão que não são maquiados pelos números econômicos, que a ficção monetária não consegue ser verossímil para quem já passou fome. Em uma canção onde os elementos autobiográficos ressoam temos um migrante nordestino percebendo que a promessa de prosperidade é falseada e falseável. Que não há bilhete premiado que garanta a felicidade além das recompensas ofertadas para o bom trabalhador. 


terça-feira, 5 de julho de 2022

Tempos melhores

Quero magia, cor e cenas
pra toda boca que beija
Bang bang só nos cinemas
retomados das igrejas
Bibliotecas eu prefiro
do que esses clube de tiro

terça-feira, 28 de junho de 2022

13 anos

bate sua  punheta
escondido no banheiro
mas batem na porta

segunda-feira, 6 de junho de 2022

Nas noites mais cegas


Sonhei que era sátiro
e você minha ninfa
prima da floresta
e éramos nós dois
na seiva e saliva
apenas um só
tal qual um narciso
que desabrochado
é seu próprio par

Agora eu sei
Cecília bastava-me
você em meu jardim
o meu narciso minha
pétala que só
nunca mais, jamais
estaria pois somos
mais, bem mais que dois
somos primavera
no meio do outono 

quarta-feira, 18 de maio de 2022

Frente Fria

Pois quantas ruas morreram
nesta madrugada fria?
e quantos olhos cansados
perderam seu último brilho?

Já você quente no lar
quantos cobertores negou
com seu voto de indiferença?
com seu olhar pro outro lado?

Quantas vidas a paixão
(ou o ódio) assassinaram
nesta madrugada fria?
Você consegue contar?

Você consegue contar
com seu conforto e paz
de quarto, cama e tevê
mas não é sobre você

Você consegue contar
nesta madrugada fria
os quantos olhos cansados
perderam o último brilho?

segunda-feira, 2 de maio de 2022

domingo, 10 de abril de 2022

Acaso calculado

Poeta tratante
é certo: poema
feito de rompante
tem uns mil rascunhos

quinta-feira, 3 de março de 2022

Cuco quem?

Em meu ninho ela repousa
a doce cuco canora
saliva a saliva da outra
e lambe minhas bolas

terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

Beijos pra poesia

Estava eu voltando, de ônibus, da Lapa para casa de madrugada, no Rio de janeiro, Vi uma moça chorando sentada no fundo do ônibus. Tímido, eu não teria coragem de falar com ela. Mas isso não me impediu de tentar fazer algo. Saquei um dos meus livretos de poesia (ainda eram xerocados na época) e entreguei para ela. De início ela recusou dizendo que não tinha dinheiro. Eu lhe disse que era um presente e fui me sentar lá na frente perto do trocador, não pude nem ver se ela realmente estava lendo meus versos. Chegou meu destino, dei o sinal e desci. Quando o ônibus arrancou e passou por mim, ela abriu a janela e me lançou um bilhete lotado de beijos dizendo "a arte ainda vai salvar o mundo!!!" 

Duda, Por onde andará você?

domingo, 20 de fevereiro de 2022

haicai

Noite japonesa
tem sushi,sakê e shibari,
comcorda princesa?

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2022

quarta-feira, 19 de janeiro de 2022

Sujeito Erroso

A cada momento
e por todo instante
eu lamento e tento
seguir adiante
contando meu aperro
calando meu berro

No fio infiel
do meu sacramento
nas juras de níquel
de arrependimento
pois sou eu amante
duma dama errante

Nem no nunca mais
sou inverossímil
sem risos ou ais
uma lenda ao léu
nem tocam os ventos
de mil e oitocentos

O meu calafrio
é nunca ter cais
mas tenho o delírio
de dominicais
manhãs de mel 
pipa e carretel

Serei só miragem
na curva do rio
sou terceira margem
um nem-ser-se-viu
d'olhos lacrimais
sem nada demais

sem mirada verde
sem pele alva e virgem
sem cama ou rede
um velho em vertigem
que sempre ouviu
ene, a, o, til

de tudo e todos
pois a mim sucede
sortidos engodos
que quase me fede
desde minha origem
com ferro e fuligem

Mas jamais que enterro
meu sonho no lodo
tal quem não é bezerro
muito menos touro
pois eu sou quem ferve
o inferno e lhe bebe

E nada garante
que esse meu desterro
não é sem sextante
sem bússola só erro
exílio sem êxodo
soldado sem soldo 

Insônia

A lua no espelho da penteadeira
a milhares de milhas enxerga
(e talvez se veja orgulhosa de si,
mas ela nunca, nunca se alegra)
além ou longe de se deitar, ou
talvez daquelas que dormem de dia.

Se seu Universo virasse vazio,
ela o mandaria ao inferno,
e acharia um olho d'água,
ou um espelho, para morar
teceria pra si seu casulo
e cairia em sua gruta

nesse mundo ao avesso
onde esquerda é direita,
onde sombra é corpo,
onde não nos deitamos à noite,
onde o céu é raso como o mar
é profundo, e você me ama.

Tradução do poema Insomnia de Elizabeth Bishop

terça-feira, 18 de janeiro de 2022

Shaninha

Shaninha, serviçal da senhorita Lula, jaz em cálcio
preta, de branco, ela desceu
abaixo da superfície do recife de coral.
Sua vida dispensou
cuidando da senhorita Lula, por sua surdez,
Na cozinha comiam seu jantar, ela na pia 
enquanto Senhorita Lula comia na mesa.
As nuvens foram de branco para o funeral
e os rostos de negro

Esta noite o brilho da lua alivia
o derreter das rosadas rosas de cera 
plantadas em latas de areia
perfiladas para a perda da Senhorita Lula;
mas quem gritará e a fará ouvir?
Na procura por terra e mar de outra pessoa
o farol vai descobrir onde Shaninha jaz
para apenas ignorá-la; o mar, revolto,
lhe ofertando onda após onda.


Tradução do poema Cootchie de Elizabeth Bishop




quarta-feira, 5 de janeiro de 2022

Na ponta dos dedos

Todo, todo dia cê fuma
às quatro e vinte da tarde
E em mim a larica apruma
pra ver-te de quatro e me arde
como brasa essa vontade:
sê a fumaça que te invade

quinta-feira, 30 de dezembro de 2021

Invisível cotidiano

Eu na papelaria e aviamentos imprimindo umas pílulas de poesia, eis que chega uma senhora e pergunta para a atendente:
-Moça você tem feixo éclair invisível?
A atendente de pronto responde:
-Pera ai que eu vou ver se tem.
Fico olhando para aquela situação impossível e me pergunto filosoficamente como ela vai VER se tem se ele é INVISÍVEL?

Sonetilho para Cecília

Meu desejo, paz e leito
é assim sóror Cecília
sonho largo corpo estreito
minha maior redondilha

É meu chão e também ilha
Onde me aporto perfeito
É loba e minha matilha
que banqueteia meu peito

Por onde corre, tropeço
pois conhece meu segredo
o meu erro e redenção

Verso cujo metro meço
na lembrança do degredo
rima, ritmo coração

terça-feira, 14 de dezembro de 2021

Vendaval

Não respira
só me beija
pra quê fôlego
se há saliva?

quinta-feira, 18 de novembro de 2021

Cuando grita

Moça sábia bem artista
tem no rosto delicado
seu trunfo que até despista
o sujeito mais errado
que não sabe que seu beijo
é atacado no varejo

Ela faz fila, faz lista
dos amor arrebatado
mas escolheu um vigarista 
pra ter seu cu arrombado
moço de trato e traquejo
que faz dela seu gracejo

Ele guia e ela quica
requebrando seu quadrado
sofre e goza pela pica
no seu rabo agasalhado
enquanto pinga desejo
seu xibiu farto e sobejo

Porque seu cu quando grita 
não pensa nem tem cuidado
é fome que dá e repica
de esfolar no seu safado
sufoca a fronha num beijo
e o pau no cu é gorgolejo

Só o mais corajoso fica
e mete o dedo sem medo
ele sabe onde se arrisca
porque cu não é brinquedo
é preciso ter molejo
pra cair no saculejo

sexta-feira, 12 de novembro de 2021

Missiva

Ergam seus copos e corpos!
Boa noite meus queridos
e minhas queridas poetas
Da minha rima macia
vem o desejo vadio
que escorre na redondilha
e pela mão eu lhes guio

Ergam seus copos e corpos!
Deixo pra todos ouvidos,
que vai começar a festa:
Cães ladram e gato mia
Eu procuro companhia
que aceite meu desafio
de trepar em verso e cio!

Ergam seus copos e corpos!
Não haverá arrependidos,
mamando juntos nas tetas
das musas gregas, Sofia,
Safo, Ágape e outro trio
que nossa teogonia
criar por deleite e ócio!

terça-feira, 9 de novembro de 2021

Com quantos castelos se faz um monte?

A prima Cecília
só dormia sonhando
beata o barroco
das ruelas dos livros
que o primo vendia
nos vagões do trem
queria ela o embalo
daqueles trilhos
queria ele a paz
daqueles olhos
e nenhum dos dois
tinha de verdade
tão perto, tão próximos
mas sem saber que eram
espelhos um do outro.

sábado, 6 de novembro de 2021

incorrigível

O amor está no (b)ar!

Confidências


Eu nunca vivi em Itabira
Principalmente nunca fui em Itabira
Talvez por isso não seja de ferro
Noventa por cento de sangue nas calçadas
Oitenta por cento de sangue nas armas
E essa alienação das vidas que são negras e pobres

A falta de vontade de amar quem não é igual
vem de mim que sou branco, que sou homem, de belo horizonte

E o hábito da indiferença, que julga 
é amarga herança mineira

Das minas gerais, prendas diversas te ofereço
esta pedra de nióbio, futuro minério do Brasil
esta cloroquina do braço forte do exército
esta vacina de mão amiga e contrato superfaturado 
esta rachadinha, esta notícia falsa

tive fome zero, tive a sexta economia, fui poeta
hoje me tranco em casa
Itabira não é apenas um vídeo nas redes
Mas como dói!

#paracegover: Vídeo de Segurança - Itabira 05/11/2021, Sexta-Feira 18:46 - Mulher Negra, magra de estatura baixa está na calçada de rua movimentada, carrega criança no colo, está de mãos dada com outra criança de 6 anos é abordada violentamente por dois policiais que afastam a segunda criança. A criança afastada grita, tenta proteger a mãe completamente impotente, Os policias derrubam no chão a mãe ainda com a criança no colo, ajoelham em seu pescoço e a imobilizam. 

segunda-feira, 1 de novembro de 2021

Canto do Labirinto

Quanta fantasia
dos seus sussuros
guarda em ti, Cecília
quantos os delírios
ditos nos ouvidos
tais doces pecados
guarda em ti, Cecília
Hoje, no meu sonho,
curto entrecortado
sou eu quem delira

sexta-feira, 29 de outubro de 2021

4lg0r1t1m0

Eu tenho uma enorme, 
GIGANTESCA, R4iv4 
de ter que censur4r 
as palavras para que 
o 4lg0r1t1m0 não me p3rsiga. 

Me sinto numa época 
completamente vigiad4 puritan4. 
É sufoc4nt3! É dit4dvr4. 
É infantil ter que censur4r pal4vrão, 
od3io ter que ler cool.

Eu quero a beleza 
do c e do u juntinhos.

segunda-feira, 25 de outubro de 2021

Trova T

Tortura tua timidez 
todo tato torturado
tem telúrica tristeza
traceja treme termina