Publicação em destaque

Poeta e apenas poeta

Já me olharam espantados quando digo que sou poeta e só poeta. Que não canto, nem danço, nem atuo, nem pinto, nem bordo, que "só" ...

quinta-feira, 31 de outubro de 2024

riacho

satisfeita a velha

lava o lençol da donzela

sangue e primavera 

quinta-feira, 24 de outubro de 2024

Veneno antigo

Esse frasco de cicuta

são as promessas que fiz

pra mim mesmo sem saber

que matariam devagar 

meu eu, meu sonho e sentido

pouco bem pouco por vez


Não sei se sei dizer quantas 

promessas ainda carrego

por zelo como amuletos.

   Quebro com carinho,

   dos cacos faço um mosaico 

   pra luz entrar sem perigo 


Não sei dizer porquê ainda honro

e prossigo na vingança

silenciosa contra meu passado

   Quebro, enfim, a caixa preta

   e hasteio bandeira branca

   pra mim pois não há inimigos


Eu sei bem daquelas tantas,

que jurei só com meu pranto,

por dores hoje esquecidas

   Quebro em silêncio e grito 

   o que me prende ou afasta 

   do meu sonho e meu sentido


Dos crimes sem ser culpado 

carrego essas juras cúmplice

e penitente as mantenho

   Quebro essas minhas correntes

   Com o formão e o martelo

   pra esculpir a liberdade 

terça-feira, 22 de outubro de 2024

Sinto

o gosto o cheiro das uvas
o tonteio e o embaraço 
Ah! como lhe quero rubra
e nua dentre meus braços

segunda-feira, 21 de outubro de 2024

Prelúdio

Remido fasol mido
Remido sol famido 
Resolmi do lafami
do lafami resolmi

Si solre do famisol
Si solre do mifasol
Remido fa ladomi
Refado mi soldomi

A pianista dizia
no mifasol domi todo
amor ladomi que sentia 

e o poeta remido 
Solfejava em redondilha 
de do re mi até do

sexta-feira, 18 de outubro de 2024

Poeta Sobre Trilhos

sim senhor doutor 
minha terapia
é ir pro metrô 
vender poesia

quinta-feira, 10 de outubro de 2024

Haicai Xadrez Zoológico

ocaso ecocida

morrem os grandes felinos

de gripe aviária

quarta-feira, 9 de outubro de 2024

História dos livretos Poeta Sobre Trilhos

São 31 edições, trinta e um livretos do Poeta Sobre Trilhos. São livretos que produzo desde 2011 e levo nos vagões de trens e metrôs do Brasil. Comecei, é verdade, no Rio de Janeiro, saindo de Caxias até Bonsucesso, onde pegava o expresso para a Ilha do Fundão, mas já fiz incursões no metrô paulistano, saindo da estação Tietê até baldear na estação da Luz e ir para São Cristóvão. Hoje, de volta aos meus belos horizontes, vou da Vilarinho até o Eldorado.

São muitos os caminhos que já percorri sobre trilhos, levando poesia, levando meus versos para tanta gente que não sabia que gostava do prazer que um poema pode nos dar. Minhas primeiras edições se chamavam "Sr. Personna, o que trazes pra mim?" Eu imprimia, xerocava, dobrava e grampeava um por um, fazendo em levas de 20, depois 50, depois 100, depois 200, até que comecei a mandar para a gráfica fazer seus 1.000, depois 2.000, ainda em preto e branco e papel sulfite.

Mas dei um salto quando consegui um lugar para fazer mais barato, colorido e com tiragem de 2.500 exemplares na edição 13, que então em seguida foi rebatizado de Poeta Sobre Trilhos, já no ano de 2012. Com esse novo formato, fiquei por muitas e muitas edições coloridas, em papel couchê e produção industrial. Até a edição 28, em 2016, quando caí em depressão e diminui meu ritmo, fazendo a edição 29 em 2017 e a edição 30 em 2019.

Veio então a pandemia, e com ela deixei definitivamente o Rio de Janeiro. Voltei aos belos horizontes em 2020 e toquei meus dias longe dos trilhos por quatro anos.

Em 2024, sentia um vazio no peito, sentia falta de algo, e esse algo não era só escrever, pois continuei nesses anos todos alimentando meu blog srpersonna.com.br com poemas, crônicas, contos e ensaios. Esse algo era o prazer de ver o leitor me lendo à minha frente, mostrando seu poema favorito para outro leitor ao seu lado, declamando meus versos para a namorada e até se emocionando com o que lia.

Fiz então a edição número 31, que, 13 anos após a primeira, me deu um sopro de vida e propósito, me encheu o depósito de lirismo e esperança que andava tão vazio em mim. Ter de volta esse contato íntimo com o leitor me fez mais vivo, me inspirou e conseguiu me tirar de um luto que parecia não ter fim.

Sinto que o bem que eu faço para os leitores não é maior do que o bem que eles fazem por mim. O importante não é o dinheiro, é essa troca íntima e confidente que poucos artistas têm acesso, entre o público real e o poeta. Só quero agradecer por estar de volta como Poeta Sobre Trilhos; esse é meu lugar, de onde eu nunca deveria ter saído.

domingo, 6 de outubro de 2024

Haiquase carente

Sem seu cabelo

amadrugada é longa

como travesseiro

quarta-feira, 2 de outubro de 2024

segunda sem motivo


SEGUNDA SEM MOTIVO
ME MOVO MEIO MANCO
E TRISTE TOMO CAFÉ
SEM AÇÚCAR SEM SAL
O PÃO ME ACOMPANHA
MURCHO SEM RECHEIO
E NO MEIO ME FALTA
UM POUCO BEM POUCO
DE TUDO QUE ME RIO
DOU ADEUS PRA CAMA
LONGUÍSSIMA SEMANA
NUMA MESMA CAPITAL
DONDE NASCI E IREI
MORRER DIA DE CADA
VEZ QUE PASSO NUMA
PRESSA SEM PROSEAR
SEM NEM SEQUER VER
QUE RAIA NOSSO SOL
ENTRE FUMAÇA PRETA
E TRÂNSITO CAÓTICO
TRABALHO E ESPALHO
MEU RESTO DE FORÇA
QUE ME RENEGA ESSA
SEGUNDA SEM MOTIVO

quarta-feira, 18 de setembro de 2024

O belo como moldura da violência

A arte deixou de ter seu sentido latino de técnica; porém, ainda é comum vermos todo artista e sua obra como um exemplar indissociável da Areté grega, como um exemplo do ápice do humano. Os padrões rígidos do que é arte se dissolveram e, hoje, Arte é a moldura na qual canonizamos o artista.

A arte é moldura, ou seja, aquilo que, através do uso discursivo, classificamos como produção artística, a despeito da técnica. É na moldura que consideramos a intencionalidade do sujeito quando o mesmo se enquadra em nosso construto de sujeito ocidental, branco, neurotípico e cristão, e o ignoramos quando desviante.

A moldura da arte cai bem para os quadros em série feitos sob encomenda para as galerias, os livros em série para serem bestsellers, a escultura sob subvenção pública a despeito do público. E também é arte o que consideramos belo, a despeito do que o sujeito desviante pensa sobre seu próprio trabalho.

Porém, o belo não é monopólio da arte, e muito menos seu objeto central. Quando, atraídos pelo belo, chamamos de arte o sagrado dos povos originários ou a profissão de fé de um homem preso por sua própria mente e também pelo Estado, estamos cometendo uma violência contra a autonomia desses sujeitos, cujas obras de inegável beleza não possuem a intencionalidade de serem arte. É uma violência simbólica dissociar esses objetos de seu uso para atender a um discurso alheio aos sujeitos e assim emoldurá-los como arte.

Ademais, desprezamos a arte que não possui o predicado de belo quando concebida pelos sujeitos à margem da moldura discursiva padrão. Quando o desviante ofende o senso estético de quem dita ao que se deve conceder a moldura de arte, temos outra violência, que nega novamente a autonomia do sujeito e de seu entorno, que percebem como arte o que fazem e vivem.

Entretanto, a moldura de arte é apressadamente posta em um objeto que, mesmo carecendo de técnica ou empenho estético, é produzido por um sujeito elencado como digno da Areté para o nosso discurso ocidental contemporâneo. Há aqui uma culpa de séculos, pois essa cultura chamou de lixo a arte de Van Gogh e, por isso, hoje chama de arte qualquer lixo produzido pelo sujeito adequado, para não se comprometer com as gerações futuras.

O zine de poesia "independente", a música "experimental" e o quadro "indecifrável" são obras igualmente criticáveis, independentemente de seu autor ser do morro ou do asfalto. Criticar um poema, ou pior, criticar um poeta tornou-se uma espécie de pecado capital. Não entender um poema ou deixar de aplaudir uma produção medíocre idem. Não há espaço para se preocupar com a forma, com o estilo; somente importa o que se faz sentir, o que provoca e encanta.

Parafraseando Gertrude Stein: um lixo é um lixo é um lixo é um lixo, e é preciso ter coragem de dizê-lo. É preciso ferir o Narciso de cada artista emoldurado, assim como é necessário quebrar a moldura que violenta o sujeito e sua obra, que são autônomos ao próprio conceito de arte ocidental, ou roubar as molduras para as artes que são marginalizadas.

Devolvamos as açoiabas aos Tupinambás, devolvamos os estandartes do Bispo do Rosário e botemos toda a arte para reciclar suas obras, artistas, molduras e conceitos, pois a arte merece mais que ser crivada como comércio ou desculpa para culpas passadas.

domingo, 15 de setembro de 2024

Xepa

Sempre fui da xepa, da promoção e da pechincha, comprei meu coração na barraca de um e noventa e nove.

Porém meu peito e pulmão, pobres e expropriados, fizeram fiado. Eles penduraram a conta pra minha garganta pagar sob protestos.

Por solidariedade a boca fez greve não queria o novo e vermelho inquilino: piquete montado, dentes  trincados...

Mas a mão furou, pelega, não era de esquerda. Furado o piquete o coração caiu na barriga, burguesa, de tão gorda se fez de sonsa e não quis devolver, foi briga das feias, minhas velhas veias tiveram que intervir:

GREVE GERAL e o general da cabeça, prefeito não eleito do meu corpo, entrou em febre, uma convulsão social. Reintegração de posse, biles, vômito e rebordose, mitocôndrias em pânico ouviam a internacional!

Eu feito latifúndio improdutivo, fui numa noite  tomado por uma princesa  socialista, que encampou meu corpo, pôs meu coração no peito, deu um jeito nos grevistas e botou de regime minha barriga.

E todos, em todas as partes, pedaços, ossos, órgãos, células, culturas bacterianas   e   tártaros superbacanas puseram abaixo a superestrutura. 

Era a revolução e, de agora em diante. Todos, todos teriam o direito, Inalienável, ao pão,  à poesia e... é claro, aos beijos dela.

segunda-feira, 9 de setembro de 2024

domingo, 8 de setembro de 2024

Écfrase Alexandrina

Eu tô com cara de poeta vagabundo?
Justo! Não quero jamais confundir meu público:
cabelo bagunçado e cavanhaque inculto
aro redondo pros olhos e peito impúdico.

Pelo espelho destaca o gosto tatuando
em minha perna eis coxa eis ninfa e sátiro
dançando na gravura indecente prum culto 
a Dionísio que logo acima sobe ao púlpito 

No braço como num abraço meus asseclas
sacerdotes se brindam num banquete eterno 
Glauco, Hilst, Leminski, Augusto, Rosa e Siba

Colasanti, Matos, Lee, Quintana, Sergio, Sade
e o satírico Raul completam num bom termo
a volta feita na foto deste poeta 

sábado, 31 de agosto de 2024

Coreto liberdade

sussurra a voz rouca
não fique sozinha, 
com essas garrafas, 
de vinhos sem safras. 

sua linda boca, 
que não é só minha, 
beija o corpo meu, 
que não é só seu.


Belo Horizonte, Julho de 2002

quinta-feira, 29 de agosto de 2024

Cyberpunk em 5 palavras:

I)
Implantaram um coração num Bilionário 

II)
Porcos corporativos dão melhores hambúrgueres 

III)
Televangelista enforcado nas tripas corporativas

quarta-feira, 28 de agosto de 2024

Vestido azul

 Quero dedilhar meus dedos
quero-os em ti mergulhados
Nadando dum lado ao outro 
no seu mar e rio revoltos

Quero ser abocanhado
pouco a pouco degustado
pelos seus lábios a postos
pra provar-me todos gostos

Em riste rijo te rasgo 
esse poema devasso
essa cantiga perversa 

Pois me inspira quando pira
quando arfa, rosna, delira,
devora (ou vice e versa)

domingo, 25 de agosto de 2024

Poeta,

por favor,

só empilhar

palavras

não se faz

poesia.


sua prosa,

na vertical,

não se vira

um poema

só por isso.


não só leia,

ouça a voz

fale escute

o seu ritmo

verso é som


por favor,

só empilhar

palavras

não se faz

poesia.

quinta-feira, 22 de agosto de 2024

Sci-fi em 5 palavras:

I)

no céu a terra cintilava


II)

pálido ponto azul, nunca mais 


III)

Rápido, siga aquele táxi voador! 

terça-feira, 6 de agosto de 2024

Dos delírios e deleites

paciente pela florada,
de lírios e copos de leite,
ele, dia a dia, regava,
gentil, os seios da amada
com o seu sêmen e saliva...

quinta-feira, 1 de agosto de 2024

Quarenta e sete segundos

Pro inferno no mais baixo dos seus círculos
é o ponto exato que eu ia se nisso

eu de fato pudesse crer tranqüilo

sem chance de galhofas ou de risos


Tranço e destranço as cordas do suicídio

como quem reza as contas de seu terço

num vício mui macabro e bem ridículo

e cada nó me vale um pé de verso


Pois não vou me orgulhar de ser ateu

você que tem um deus é mais astuto

co'amigo imaginário pra brincar


O que vai me esperar é qualquer breu

um grão-nada tão calmo, absoluto

que da música não posso reclamar

quarta-feira, 31 de julho de 2024

Prece para ti

Quero o descalabro
De ter cada canto
De ti devastado
Numa fome e espanto

Quero ungir seu rabo
Com meu óleo santo
Pra levar a cabo
Seu orgasmo e pranto

Quero lhe causar
Deliciosas dores
Com prazer imundo

Posta em meu altar
De amarras e flores
Num jardim fecundo

quarta-feira, 24 de julho de 2024

O papel aceita tudo

É poesia! Liberdade!
Lirismo em flor e cio?
Não! não passa de vaidade...
feita de verso vazio.

O papel aceita tudo
do soneto mais profundo
ao poema mais capenga
e tem quem se surpreenda
co'a má vontade ou esforço
que quem rima rumo ao poço
dessas metáforas mortas
de tantos clichês e cartas
piegas que sem quê nem
pra quê canta pois convém
ao mau gosto o pior verso
que sem risco sai direto
da boca para a latrina
dos ouvidos e alucina:

É poesia! Liberdade!
Lirismo em flor e cio?
Não! não passa de vaidade...
feita de verso vazio.
 
O papel aceita tudo
não importa o absurdo
passa recibo e atesta
é um gênio, é poeta
a nova Creta e Parnaso 
a Ilíada de um asno
é calamidade pública
um púbis de tão impúbica
e quem publica concorda
é aplauso de claque e corda
e embebeda o ego, mata
esfola, rasga e maltrata
sua musa torturada
em rima malacabada:

É poesia! Liberdade!
Lirismo em flor e cio?
Não! não passa de vaidade...
feita de verso vazio

sexta-feira, 12 de julho de 2024

Poeme-se

Poesia nas praças,
becos e avenidas.
Poesia pra ser
cantada e vestida!

Poeme-se a rua
de pedras floridas
Poeme-se os trilhos
em lenta corrida

Poema é um nada
lotado de tudo
Poema é piada
de choro profundo

Poema é queimada
inundando o mundo

sábado, 6 de julho de 2024

Sete

Sete

remexendo meus guardados
encontrei um par de estrelas
misturadas entre versos
que não sei porque escrevi
duas trovas de três versos
um sonetos sem tercetos
meio haiquase incompleto

tantos entre tanto lixo, 
e tonto entre tanto resto
a caneta que eu procurava
só deixei por lá ficar
pois por esse par de estrelas
meu lirismo não contava 
e menos ainda escandia

nesse espanto me perdi 
mas não me fiz de rogado
escondi minha vergonha
ritmando na redondilha
sete fones sete versos
pr'estrelas de sete pontas
amparadas nos meus dedos

eram elas delicadas
e trançadas com esmero
duas estrelas de brio
quente de macio toque
do meu bodoque, da lira
que delira de tão doida
poesia pura e vadia
 
duas estrelas e a quinta
estrofe em septilha cai
sem tema sem trema sem
nem ao menos respirar
é só mofo de gaveta
com gorjeta guardada
pro velho verso garçom 

sobe o tom e tira o pó
dessa poesia branca
asséptica que se lê
só com os olhos e nunca
com os ouvidos ou peito
abaixo o verso mental
quero fluxo do meu grito

meu doce agito termina
e sem rima não se manca
mas marca com fogo a língua
que repenteia meus versos
serpenteia minha boca
que surpreso ouve estrelas
e ri de encanto no lacio

sábado, 15 de junho de 2024

Virtuosa

Como um anjo estralou seus dedos, moveu de um lado ao outro seu pescoço, relaxou seus ombros e de frente ao piano pôs-se a tocar com o público às suas costas. 

Ela era virtuosa, parecia uma só com o piano, mas desde as primeiras notas, a platéia inteira hipnotizada por sua música e seu jeito de princesa sequer percebia os movimentos de seus quadris. 

Seu amor, numa hipnose dupla, sabia que aquela sinfonia sobre o banquinho era para si, o instrumento esfíncter, tocava uma melodia, leve e doce, a cada contrair e relaxar ao redor do plug. 

sexta-feira, 14 de junho de 2024

Treze estrofes sobre trilhos

Sim, lhes confesso, eu sou o que sou
sou poeta, poeta sobre trilhos
pois toda poesia não pode nunca
estar presa, trancada na gaveta

Poesia não se cabe bem guardada
escondida em biblioteca pública ou
particular nem só merecida por
quem pode pagar numa livraria

Poema é meu caminho, é meu trilho
pródigo filho feito o pai rebelde
Poema faz do riso mais que um alento
dá forças pro seu choro e canta o grito

Sim, bem atento, eu sou o que sou
sou poeta, poeta sobre trilhos
um passageiro? meu novo leitor
o vagão? livraria e biblioteca

Poesia leve levo nos vagões
do metro, do metrô ou qualquer comboio
do trem pois o poeta tira de onde
não tem para por onde não se cabe

Poema é a colher da sopa rala
do mendigo ou grossa do grã-fino
Poema vem e mata minha sede
e dá mais fome dum lirismo solto

Sim, atrevido, eu sou o que sou
sou poeta, poeta sobre trilhos
nos livretos de versos e poemas
eu me entrego sem pressa ao leitor

Poesia feito amor arde sem se ver
que até nos descontenta tão contente
e eloquente sussurra travessuras
pecados e delitos saborosos

Poema é pro dia a dia e também
para qualquer um ou para um qualquer
Poema faz seu bem querer com quem
conta seus pix, moedas ou estrelas

Sim, eu respiro, eu sou o que sou
sou poeta, poeta sobre trilhos
meu alvo? desalento passageiro 
vidrado na janela ou celular

Poesia assim tão branca como a noite
tão negra que de dia labuta versos
pintada de arco-íris ri e se oculta
num pote sempre dado de bom grado 

Poema que nos bebe quente feito
licor vermelho, rum douro ou cachaça
Poema feito faca corta a carne
do poeta, do leitor, que juntos sangram

Sim, lhes convido, eu sou o que sou
sou poeta, poeta sobre trilhos
me deito com a musa que bem me abusa 
pra dar o meu melhor e pior verso 

sábado, 8 de junho de 2024

Meu Doce

Confesso que lembrei-me com carinho
dessa forma faminta com que me toma,
que faz dessa faceira o seu cãozinho 
só seu laço e coleira que me doma

suspiro entre meu sonho e meu soninho
eu deliro e dedilho-me: me coma,
me machuca, me morda meu corpinho
eu quero ser prendada de hematomas 

Me sonho: suas mãos de doces garras
me envolvem, me atam, são fortes amarras
são tudo que desejo e que pressinto 

Sou presa por seu rosto, seu sorriso,
seu belo pinto tira meu juizo
é meu formoso e doce pirulito 

quinta-feira, 6 de junho de 2024

trova horizontina

Os mais belos horizontes 
das minhas minas gerais 
guardam suspiros aos montes 
salpicados por mil ais

sexta-feira, 17 de maio de 2024

Vês???

No alto do penhasco
cravou a Pantera
sem pressa ou asco,
garras na Quimera

No alto do penhasco
olhou a Pantera
feita de carrasco
cair a Quimera

Viu cair ingrata
o doce doce sonho 
que vil embalou

Na tristeza exata
no cigarro fez ranho
na boca escarrou

quinta-feira, 16 de maio de 2024

Poeticamente sádico

amarro bem os meus versos
e tolho cada palavra
que avulsa me vira escrava
de meus desejos perversos

gosto quando a rima crava
na carne ímpetos imersos
em taras, gozos diversos
e toda perversão rara

numa voz doce e macia
teço bem uma ilusão
de que a corda acaricia

pelas linhas da escansão
geme cada poesia
que encadeia de tesão

terça-feira, 7 de maio de 2024

Adeus Vó Cici

Nunca mais ouvirei
o canto duma cigarra
sem pensar em ti

terça-feira, 30 de abril de 2024

Coroa de Sonetos de Amor XV

moça bonita me faz seu amor
sabendo onde estão sem sequer lhes ver
nesses sonhos que são da nossa cor
o que nunca jamais vamos perder

eternidades são de um só calor
minha face na sua padecer
quero seu beijo com fogo e fulgor
tão forte que me faz quase morrer

linda não fale só faça a promessa
não! não diga mais nada só o seu sim!
é minha por inteiro tal lhe sou

não quero que se assuste nem esqueça
quero que saiba bem que como a mim
Moça bonita, nunca alguém lhe amou

segunda-feira, 29 de abril de 2024

Coroa de Sonetos de Amor XIV

moça bonita, nunca alguém lhe amou...
do tamanho do espaço sideral
digo mais, que jamais alguém beijou
seus lábios com paixão tanta ou igual

moça bonita veja bem como sou
as minhas asas são do carnaval
passado e  minha auréola apagou
não passo duma nota de três real

sou malandro nadinha de perfeito
lhe compro flor na banca duma praça
se meu atraso for mais que um horror

lhe falo sou sincero desse jeito
me xingue não, nem ligue pra essas graças
moça bonita me faz seu amor


[mo]ça bo/ni/ta, [nun]ca al/guém/ lhe a[mou...]
[do] ta/ma/nho/ do es[pa]ço/ si/de[ral]
[di]go/ mais/, que/ ja[mais] al/guém/ bei[jou]
seus [lá]bios/ com/ pai[xão] tan/ta ou/ i[gual]

[mo]ça/ bo/ni/ta [ve]ja/ bem/ co/mo [sou]
as [mi]nhas/ a/sas [são] do/ car/na[val]
pa[ssa]do e/  mi/nha au[ré]o/la a/pa[gou]
não [pa]sso/ du/ma [no]ta/ de/ três [real]

[sou] ma/lan/dro/ na[di]nha/ de/ per[feito]
lhe [com]pro/ flor/ na [ban]ca/ du/ma [praça]
se [meu] a/tra/so [for] mais/ que um/ ho[rror]

lhe [fa]lo/ sou/ sin[ce]ro/ de/sse [jeito]
me [xin]gue/ não/, nem [li]gue/ pra e/ssas [graças]
[mo]ça/ bo/ni/ta [me] faz/ seu/ a[mor]

domingo, 21 de abril de 2024

Coroa de Sonetos de Amor XIII

quero que saiba bem, tal é pra mim
só quero lhe comer. Mais? não tô afim
não podemos pular todo esse flerte
vem logo me pagar-me esse boquete?

não, não que eu seja tal pessoa ruim
mulher bonita trato bem assim
se não sabe ela nem pintar o sete
e na cama sequer rebola ou mexe

você se faz de sonsa feito porta,
espera que eu me dê todo trabalho
de desvendar aquilo que calou?

Não se faça de tonta, foi sim carta,
desde o começo, fora do baralho
moça bonita, nunca alguém lhe amou...

[que]ro/ que/ sai/ba/ [bem], tal/ é/ pra [mim]
[só] que/ro/ lhe/ co[mer.] Mais?/ não/ tô a[fim]
[não] po/de/mos/ pu[lar] to/do e/sse [flerte]
[vem] lo/go me/ pa[gar]-me e/sse/ bo[quete?]

não, [não] que eu/ se/ja [tal] pe/ssoa/ ru[im]
mu[lher] bo/ni/ta [tra]to /bem/ a[ssim]
se [não] sa/be e/la [nem] pin/tar/ o [se]te
e [na] ca/ma/ se[quer] re/bo/la ou [mexe]

vo[cê] se/ faz/ de [son]sa/ fei/to [porta,]
es[pe]ra/ que eu/ me [dê] to/do/ tra[balho]
de [des]ven/dar/ a[qui]lo/ que/ ca[lou?]

[Não] se/ fa/ça/ de [ton]ta,/ foi/ sim [carta,]
[des]de o/ co/me/ço, [fo]ra /do/ ba[ralho]
[mo]ça bo/ni/ta, [nun]ca al/guém/ lhe a[mou...] 

sábado, 20 de abril de 2024

Coroa de Sonetos de Amor XII

não quero que se assuste nem esqueça
pois com meus gesto cheios de rudeza
eu quero lhe dizer que minha pressa
é o tanto que minh'alma lhe deseja

antes que nessa mente os medos teça
sente e beba comigo um vinho à mesa
sinta o sabor do aroma nessa taça
cada gota é toda uma represa

você, meu vinho mais inebriante
sabor macio, com toque de carvalho
delícia de não ter começo ou fim

mais uma taça, brinde dos amantes
desse amor eu lhe quero, eu me embalo
quero que saiba bem, tal é pra mim


não [que]ro /que/ se a[ssus]te/ nem/ es[queça]
pois [com] meus/ ges/to [chei]os/ de/ ru[deza]
eu [que]ro/ lhe/ di[zer] que/ mi/nha [pressa]
é o [tan]to/ que/ min[h'al]ma /lhe/ de/[seja]

[an]tes/ que/ ne/ssa [men]te os/ me/dos [teça]
[sen]te e /be/ba/ co[mi]go um/ vin/ho à/ [mesa]
[sin]ta o/ sa/bor/ do a[ro]ma/ ne/ssa [taça]
[ca]da/ go/ta/ é [to]da u/ma/ re[presa]

vo[cê], meu/ vi/nho [mais] i/ne/bri[ante]
sa[bor] ma/cio,/ com [to]que/ de/ car[valho]
de[lí]cia /de /não [ter] co/me/ço ou [fim]

[mais] u/ma/ ta/ça, [brin]de/ dos/ a[mantes]
[de]sse a/mor/ eu lhe [que]ro, eu me em[balo]
[que]ro/ que/ sai/ba/ [bem], tal/ é/ pra [mim]

quinta-feira, 11 de abril de 2024

Coroa de Sonetos de Amor XI

é minha por inteiro tal lhe sou
e desde que meu lábio lhe provou
jamais esqueci dessa tecitura
faminta e forte feita de tortura

a pele sua marca um deus que errou
tecendo-lhe asas de anjo em pleno vôo
zelando por seu corpo com doçura
cantando-me por toda mente impura

farei-lhe, dos meus reinos, a princesa
terá tudo que sonha apenas peça
será banquete em farta e bela mesa

o sonho enamorado, essa promessa,
do seu lado se faz nossa certeza
não quero que se assuste nem esqueça


é [mi]nha/ por/ in[tei]ro/ tal/ lhe [sou]
e [des]de/ que/ meu [lá]bio/ lhe/ pro[vou]
ja[mais] es/que/ci [de]ssa /te/ci[tura]
fa[min]ta e/ for/te [fei]ta/ de/ tor[tura]

a [pe]le/ su/a [mar]ca um/ deus/ que e[rrou]
te[cen]do/-lhe a/sas [de an]jo em/ ple/no [vôo]
ze[lan]do/ por/ seu [cor]po/ com/ do[çura]
can[tan]do/-me /por [to]da/ men/te im[pura]

fa[rei]-lhe/, dos/ meus [rei]nos,/ a /prin[cesa]
te[rá] tu/do/ que [so]nha a/pe/nas [peça]
se[rá] ban/que/te em [far]ta e/ be/la [mesa]

o [so]nho e/na/mo[ra]do, e/ssa/ pro[messa],
do [seu] la/do /se [faz] no/ssa/ cer[teza]
não [que]ro /que/ se a[ssus]te/ nem/ es[queça]

quarta-feira, 27 de março de 2024

Coroa de Sonetos de Amor X

não! não diga mais nada só o seu sim!
sua boca velada, seu suspiro
são respostas que quero para mim
a mais doce miragem que prefiro

não! não conto os segundos para o fim
mas você bem que sabe que sou Sátiro
e sou apenas sonho sem cetim
pois eu que tanto curo também firo.

nos marco, uno, nos faço por completo
e vejo você espelho, minha igual
com quem de olhos fechados sempre vou

fazemos esse par mais que seleto
ninfa e fauno de todo carnaval
é minha por inteiro tal lhe sou

[não!] não/ di/ga/ mais [na]da/ só o/ seu [sim!]
su[a] bo/ca/ ve[la]da,/ seu/ sus[piro]
[são] res/pos/tas/ que [que]ro/ pa/ra [mim]
a [mais] do/ce/ mi[ra]gem/ que/ pre[firo]

[não!] não/ con/to os/ se[gun]dos/ pa/ra o [fim]
[mas] vo/cê/ bem/ que [sa]be/ que/ sou [Sátiro]
e [sou] a/pe/nas/ [so]nho /sem/ ce[tim]
pois [eu] que/ tan/to/ [cu]ro tam/bém [firo.]

nos [mar]co, u/no,/ nos [fa]ço/ por/ com[pleto]
e [ve]jo/ vo/cê es[pe]lho,/ mi/nha i[gual]
com [quem] de o/lhos/ fe[cha]dos/ sem/pre [vou]

fa[ze]mos/ e/sse [par] mais/que/ se[leto]
[nin]fa e/ fau/no/ de/ [to]do carna[val]
é [mi]nha/ por/ in[tei]ro/ tal/ lhe [sou]

terça-feira, 26 de março de 2024

Coroa de Sonetos de Amor IX

linda não fale só faça a promessa
porquê agora será minha cadela
fará cada vontade mais possessa
de tornar puta minha Cinderela

ajoelhe-se, mas sem qualquer pressa
Eu quero que meu falo seja a vela
que concentrará toda a sua reza
enquanto minha mão lhe descabela

não para agora e muito menos pensa
como é que ousa servir-me só metade?
abra a boca pra benção do seu fim.

sim, Eu lhe invado e nem peço licença.
Seu sonho satisfaz sua vaidade?
não! não diga mais nada só o seu sim!

segunda-feira, 25 de março de 2024

Coroa de Sonetos de Amor VIII

que me aquece e me faz até esquecer?
é memória de quando era criança
e nós dois inventamos de correr
até depois da igreja pela praça

Eu cai e não parava de doer
como Doía! Ficou essa lembrança
de você branca quando foi me ver
todo sujo no chão uma lambança!

chegou me dando beijos pra sarar
me prometendo já que ia passar
toda dor com carinhos na cabeça

pois veio essa saudade de lhe amar
será que nós daríamos um par?
linda não fale só faça a promessa

que [me a]que/ce e/ me [faz] a/té es/que[cer]?
[é] me/mó/ria/ de [quan]do e/ra/ cri[ança]
e [nós] dois/ in/ven[ta]mos/ de/ co[rrer]
a[té] de/pois/ da i[gre]ja/ pe/la [praça]

[Eu] ca/i e/ não/ pa[ra]va/ de/ do[er]
[co]mo/ Do/ía!/ Fi[cou] e/ssa/ lem[brança]
[de] vo/cê/ bran/ca [quan]do/ foi/ me [ver]
[to]do /su/jo/ no [chão] u/ma/ lam[bança!]

che[gou] me/ dan/do [bei]jos/ pra/ sa[rar]
[me] pro/me/ten/do [já] que i/a /pa[ssar]
[to]da/ dor/ com/ ca[ri]nhos/ na/ ca[beça]

pois/ [vei]o e/ssa/ sau[da]de/ de/ lhe a[mar]
se[rá] que/ nós/ da[rí]a/mos/ um/ [par?]
[lin]da/ não/ fa/le/ [só] fa/ça a/ pro[messa]

domingo, 24 de março de 2024

Coroa de Sonetos de Amor VII

quero seu beijo com fogo e fulgor
de você meu amigo mais querido
amante e confidente dessa dor
causada pela vida e seu perigo

Me abraça forte e dá assim seu amor
que apenas desse jeito Eu consigo
voar, passar do Cristo Redentor
pra lhe contar venturas e perigos

E se hoje estamos juntos depois talvez
distância nem importa pro carinho
somos cúmplices mesmo sem nos ver

o meu amigo amante toda vez
com seu riso, seu cheiro faz meu ninho
que me aquece e me faz até esquecer


[que]ro/ seu/ bei/jo/ [com] fo/go e/ ful[gor]
[de] vo/cê/ meu/ a[mi]go/ mais/ que[rido]
a[man]te e/ con/fi[den]te dessa [dor]
cau[sa]da /pe/la [vi]da e/ seu/ pe[rigo]

Me a[bra]ça/ for/te e [dá a]ssim/ seu/ a[mor]
que a[pe]nas/ de/sse [jei]to /Eu/ con[sigo]
vo[ar], pa/ssar/ do [Cris]to/ Re/den[tor]
pra [lhe] con/tar/ ven[tu]ras e pe[rigos]

[E] se ho/je es/ta/mos [jun]tos /de/pois/ tal[vez]
dis[tân]cia/ nem/ im[por]ta/ pro/ ca[ri]nho
[so]mos/ cúm/pli/ces/ [mes]mo/ sem/ nos [ver]

o [meu] a/mi/go a[man]te/ to/da [vez]
com [seu] ri/so,/ seu [chei]ro /faz/ meu [ninho]
que [me a]que/ce e/ me [faz] a/té es/que[cer]

sábado, 23 de março de 2024

Coroa de Sonetos de Amor VI

minha face na sua padecer
o sorriso de nossos tão felizes
dias, não é o que clama meu querer
que fincou em você longas raízes

exatamente opostos no viver
nossas brigas e fodas tem matizes
nosso amor clama a cama pode ver
mesmo sendo um Apolo e outro Isis

Odeio nosso amor que me controla
pouco a pouco consome  algo de mim
Não lhe quero mais, mas vou pra onde for

Corpo: sim! Mente: não! e o peito chora
não, não me abraça quero um basta!, fim...
quero seu beijo com fogo e fulgor 

[mi]nha/ fa/ce/ na [su]a/ pa/de[cer]
[o] so/rri/so/ de [no]ssos/ tão/ fe[lizes]
[di]as,/ não /é o/ que/ [cla]ma/ meu/ que[rer]
[que] fin/cou/ em/ vo[cê] lon/gas/ ra[ízes]

e[xa]ta/men/te o[pos]tos/ no/ vi[ver]
no/ssas/ bri/gas/ e [fo]das/ tem/ ma[tizes]
[no]sso a/mor/ cla/ma a [ca]ma/ po/de [ver]
[mes]mo/ sen/do um/ A[po]/lo e/ ou/tro/ [I]sis

O[dei]o/ no/sso a[mor] que/ me/ con[trola]
[po]uco a pouco con[so]me  al/go/ de [mim]
[Não] lhe/ que/ro/ mais, [mas] vou/ pra on/de [for]

[Cor]po:/ sim!/ Men/te: [não!] e o/ pei/to/ [chora]
não, [não] me a/bra/ça [que]ro um/ bas/ta!,/ fim...
[que]ro/ seu/ bei/jo/ [com] fo/go e/ ful[gor]

sexta-feira, 22 de março de 2024

Coroa de Sonetos de Amor V

eternidades são de um só calor
que marcam, sutilmente, nossa pele
nos lábios, pelos olhos, no sabor
que me prova na força que me fere

Inebria-me todo esse rubor
de quando seu chicote bem adere
na carne num prazer de doce dor
fazendo com que o gozo se rebele

Mas se depois do gozo vem meu pranto
não será de tristeza meu doce amo
mas sim de assim poder sempre viver

Senhor meu, belo, amado, todo encanto
permite até o deleite que mais amo
minha face na sua padecer

e[ter]ni/da/des [são] de um/ só/ ca[lor]
que [marc]am,/ su/til[men]te, no/ssa/ [pele]
nos [lá]bios,/ pe/los [o]lhos,/ no/ sa[bor]
[que] me /pro/va/ na [for]ça/ que/ me [fere]

[I]ne/bri/a/-me [to]do e/sse/ ru[bor]
de[ quan]do/ seu/ chi[co]te/ bem/ a[dere]
na [car]ne /num/ pra[zer] de/ do/ce [dor]
fa[zen]do/ com/ que o [go]zo se/ re[bele]

[Mas] se/ de/pois/ do [go]zo/ vem/ meu [pranto]
[não] se/rá/ de/ tris[te]za/ meu/ do/ce [amo]
mas [sim] de a/ssim/ po[der] sem/pre/ vi[ver]

Se[nhor] meu,/ be/lo, a[ma]do,/ to/do en[canto]
per[mi]te a/té o/ de[lei]te/ que/ mais [amo]
[mi]nha/ fa/ce/ na [su]a/ pa/de[cer] 

terça-feira, 19 de março de 2024

Coroa de Sonetos de Amor IV

o que nunca, jamais vamos perder
são as nossas lembranças que guardamos
dos momentos de doce padecer
entre os lençóis que juntos nos amamos

lembre também que já fomos foder
pra isso nossos pais nós enganamos
dois jovens toda tarde pra meter
e mentir por dizer: sim, estudamos

"Menina tão ciosa" o pai dizia
e nós dois explorando a anatomia
de nossos corpos: puro despudor!

latim, derivações das matemáticas
entalpia na física, gramáticas 
eternidades são de um só calor

o [que] nun/ca,/ ja[mais] va/mos/ per[der]
[são] as/ no/ssas/ lem[bran]ças/ que/ guar[damos]
[dos] mo/men/tos/ de [do]ce/ pa/de[cer]
[en]tre os/ len/çóis/ que/ jun/tos/ nos/ a[ma]mos

[lem]bre/ tam/bém/ que [já] fo/mos fo[der]
pra [i]sso/ no/ssos [pais] nós/ en/ga[namos]
dois [jo]vens/ to/da [tar]de /pra/ me[ter]
[e] men/tir/ por/ di[zer]: sim,/ es/tu[damos]

"Me[ni]na tão ci[o]sa" o/ pai/ di[zia]
e [nós] dois/ ex/plo[ran]do /a a/na/to[mia]
de [no]ssos/ cor/pos: [pu]ro/ des/pu[dor!]

la[tim], de/ri/va[ções] das/ ma/te[máticas]
[en]tal/pi/a/ na [fí]si/ca,/ gra[máticas] 
e[ter]ni/da/des [são] de um/ só/ ca[lor]
 

quarta-feira, 6 de março de 2024

Coroa de Sonetos de Amor III

nesses sonhos que são da nossa cor
eu branquelo você essa preta linda
seu beijo caramelo o meu quitanda
você alvorada, eu só sol-se-pôr

na minha a sua boca é bem vinda
sua suavidade meu vigor
na sede suculenta meu fulgor
é suor e saliva que nos brinda 

rasteja seus cabelos em meu peito
tal cobras que deslizam pela presa
e dão seu rastro pra me enlouquecer

num mapa de serpente e fortaleza
nós navegamos juntos num só leito
o que nunca, jamais vamos perder

[ne]sses/ so/nhos/ que [são] da/ no/ssa [cor]
[eu] bran/que/lo/ vo[cê e]ssa/ pre/ta [linda]
seu [bei]jo/ ca/ra[me]lo o/ meu/ qui[tanda]
vo[cê al]vo/ra/da, [eu] só/ sol/-se-[pôr]

na [mi]nha a/ su/a [bo]ca/ é/ bem [vin]da
su[a] su/a/vi[da]de meu vi[gor]
na [se]de/ su/cu[len]ta/ meu/ ful[gor]
[é] su/or/ e/ sa[li]va /que /nos [brinda] 

ras[te]ja/ seus/ ca[be]los/ em/ meu/ [peito]
tal [co]bras/ que/ des[li]zam pe/la/ [presa]
e/ [dão] seu/ ras/tro [pra] me enlouque[cer]

num [ma]pa/ de/ ser[pen]te e/ for/ta[leza]
[nós] navegamos [jun]tos/ num/ só [leito]
o [que] nun/ca,/ ja[mais] va/mos/ per[der]

terça-feira, 5 de março de 2024

Coroa de Sonetos de Amor II

sabendo onde estão sem sequer lhes ver
é assim que lido com todos meus medos
e nesse doce ofício de escrever
sem revelar desvelo meus segredos

regojizo do sol em seu nascer
brindo pois me desnudo desde cedo
para o primeiro amor do adolescer
do qual sou eu a casa e o degredo

estamos nós fadados: paraíso
eis o nome da cela de nós dois
cujo caminho descaminha amor

estamos cá sem antes nem depois
eis feito nosso fim o nosso guizo
nesses sonhos que são da nossa cor



sa[ben]do on/de es/tão [sem] se/quer/ lhes [ver]
[é a]ssim/ que/ li/do [com] to/dos/ meus [medos]
e [ne]sse/ do/ce o[fí]cio/ de es/cre[ver]
[sem] re/ve/lar/ des[ve]lo/ meus/ se[gredos]

[re]go/ji/zo/ do [sol] em/ seu/ nas[cer]
[brin]do/ pois/ me/ des[nu]do/ des/de [cedo]
[pa]ra o/ pri/mei/ro a[mor] do a/do/les[cer]
do [qual] sou/ eu/ a [ca]sa/ e o/ de[gredo]

es[ta]mos/ nós/ fa[da]dos:/ pa/ra[íso]
[eis] o/ no/me/ da [ce]la/ de/ nós/ [dois]
[cu]jo/ ca/mi/nho [des]ca/mi/nha a[mor]

es[ta]mos/ cá/ sem [an]tes/ nem/ de[pois]
[eis] fei/to/ no/sso [fim] o/ no/sso [guizo]
[ne]sses/ so/nhos/ que [são] da/ no/ssa [cor]

segunda-feira, 4 de março de 2024

Coroa de Sonetos de Amor I

Moça bonita me faz seu amor
com seu beijo todinho para mim
mas não fique vermelha de pudor
pois daí minha fome não tem fim

Quero sua saliva e seu suor
vem na língua, na boca bem assim
sabe como ficar mais que melhor?
se me amar também cada pedacim!

Eu quero é suas mãos tão famintas
ávidas, curiosas, atrevidas
me tocando, mostrando seu querer

Beije vai, uma a uma de minhas pintas
de meu corpo, lhes chame de queridas
sabendo onde estão sem sequer lhes ver


[Mo]ça/ bo/ni/ta [me] faz/ seu/ a[mor]
[com] seu/ bei/jo/ to[di]nho/ pa/ra/ [mim]
mas [não] fi/que/ ver[me]lha/ de/ pu[dor]
[pois] da/í/ mi/nha [fo]me/ não/ tem [fim]

[Que]ro su/a sa[li]va e/ seu/ su[or]
[vem] na/ lín/gua,/ na [bo]ca /bem/ a[ssim]
[sa]be/ co/mo/ fi[car] mais/ que/ me[lhor]?
[se] me a/mar/ também [ca]da peda[cim!]

[Eu] que/ro/ é/ su/as/ mãos/ tão/ fa[mintas]
[á]vi/das,/ cur/i[o]sas,/ a/tre[vidas]
[me] to/can/do,/ mos[tran]do/ seu/ que[rer]

[Bei]je/ vai/, u/ma a/[u]ma/ de/ mi/nhas/ [pintas]
[de] meu/ cor/po,/ lhes [cha]me/ de/ que[ridas]
sa[ben]do on/de es/tão [sem] se/quer/ lhes [ver]

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2024

Hai-quase 26/02



Segunda de sol

sem nuvens, garganta seca

vai uma cerveja?

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2024

Reflexões Privadas

 ANÚBIS É 
UM DEUS 
QUE LADRA

quarta-feira, 24 de janeiro de 2024

ré médio

Você é o meu remédio
é a cura do meu tédio
meu gesso de pé quebrado 
o meu soneto emendado

Eu fiz pra você amor
a cantiga mais bonita
a música tema 
da nossa vida

Sou sim desse jeito
sou seu par perfeito
batom bem vermelho
que mancha e lhe chama
de pé e de joelho
que é assim que se ama

Eu fiz pra você amor
a cantiga mais bonita
a música tema 
da nossa vida

Sol de prometeu
todo todo meu
vem, queima comigo 
me põe a perigo
e me faz de mim
a sua mulher

Eu fiz pra você amor
a cantiga mais bonita
a música tema 
da nossa vida

Me olho no espelho 
faminta de briga
confesso o conselho
da minha barriga
capricha no estilo
vem nosso filho

Eu fiz pra você amor
a cantiga mais bonita
a música tema 
da nossa vida

Escuto ajeito escrevo
gravo antes de dormir
boto na rádio e me atrevo
só pra você me ouvir

segunda-feira, 15 de janeiro de 2024

deixa pra lá

Eu confio e me fio 
em todas tuas mentiras 
Porque cá dentro faz frio 
Sem você pra me aquecer

Por toda a minha vida

Guardo lágrimas de mar

segredos de mal me quer

qualquer um pode ver

que só sou ser sem estar 


Eu esqueci de te amar

não mais que um segundo

fui vil, roto, fui imundo 

fiquei sem ti, sem meu par


Guardo lágrimas de mar

só sou o que já passou

eco, apito de navio

praia de se naufragar


Eu esqueci de te amar 

por apenas um instante,

mas isso foi o bastante 

pro meu lamento chorar...

sexta-feira, 12 de janeiro de 2024

Devoro




Devoro devoro
devoro você!
Devoro devoro
devoro você!

Provo e como de colher
toda sua sanidade!
mastigo-te mulher
cada naco de vaidade.

E se um dia me vier
nesses ais e piedades...
só vou lhe remoer 
culpas e calamidades!

Devoro devoro
devoro você!
Devoro devoro
devoro você!

Quem tenta me benzer
com respingos de bondade...
erra, pois sou mau fazer
sou pura perversidade!

Escarneço com prazer
do perdão do padre
madre, freira ou bem-dizer... 
fodo com gosto o abade!

terça-feira, 9 de janeiro de 2024

entre

Entre o trago 
e o estrago 
muda o porre 
muda a dose

quarta-feira, 27 de dezembro de 2023

Glauco Mattoso, dos olhos ao ouvido: uma análise da poética concretista e sonetista do autor.


 

Um livro de poesia na gaveta não adianta nada 

Lugar de poesia é na calçada 

Sérgio Sampaio




Introdução 

 

Pedro José Ferreira da Silva. Mais conhecido como Glauco Mattoso é, em seus próprios termos, poeta, ensaísta, ficcionista, pós-maldito, pornosiano, barrockista, deshumanista, anarchomasochista, pós-maldito. Figura fácil nos espaços de contracultura da cidade de São Paulo e também presente na letra da canção "Língua" de Caetano Veloso, tem uma extensa e profícua produção literária em formas e estilos diversos. Com romances-pastiche, como a Planta da Donzela, com o JORNAL DOBRABIL, com seus milhares, sim milhares, de sonetos, Glauco é uma figura emblemática da poesia contemporânea brasileira, desde os anos 60 até os dias atuais. A obra de Glauco Mattoso é um verdadeiro desafio para os estudiosos dos campos literários e artísticos, uma vez que abrange uma pluralidade estilística curiosa, indo da poesia visual à produção musical. Além disso, seus discursos transgressores, que abordam temáticas constrangedoras e linguagem obscena, tornam a análise de sua obra ainda mais complexa.  

As produções de Mattoso, JORNAL DOBRABIL e Melopeia, são díspares no tempo e estilo, tendo, em comum, a cidade de São Paulo como seu espaço de criação. Em comum também a variedade de temáticas e inspirações, indo da filosofia ao fescenino, do poema-piada ao poema-protesto, passando por ironias, galhofas, toda sorte de provocações que tornam sua poesia de sabor intenso e, às vezes, deliberadamente indigesta. Como recorte, podemos analisar sua transição de pseudônimos que, nas primeiras edições do JORNAL DOBRABIL, se apresenta como o assonante Pedro, o Podre, e caminha para a autoironia de Glauco Mattoso, em alusão ao glaucoma que lhe tirou a possibilidade da poesia concreta e lhe enviou aos braços de Gregório de Matos e seus sonetos cuja temática Glauco sempre louvou em suas próprias obras. 

Os jornais DOBRABIL são um conjunto de obras lançadas pelo autor nos anos 70 do século XX. Nestes trabalhos, que emulam o formato de um jornal tradicional, o autor insere sua poética concretista usando os caracteres de uma máquina de datilografia para formar seus versos, sua prosa, seus poemas concretos e também toda a diagramação dos seus jornais, ou seja, margem, fontes, tipografia e tamanho de letra, tudo é composto apenas pelos caracteres de uma máquina de escrever. Cabe destacar que a inserção da poética concretista, nos jornais DOBRABIL, representa uma importante contribuição do autor para a renovação da poesia brasileira nos anos 70, conforme assegura Haroldo de Campos ao dar a Glauco o epíteto de Poeta do Asfalto em seu livro Poesia Urbana 

O álbum Melopéia é uma obra de Glauco Mattoso lançada no início da primeira década do século XIX, obra em que Glauco convida diversos artistas para interpretarem seus sonetos através da música. São escolhidos músicos das mais diversas vertentes, como o punk rock da banda Inocentes, o funk de DJ Krâneo, o escárnio de Falcão, o concreto de Arnaldo Antunes, o existencialismo de Humberto Gessinger, o punk brega de Wander Wildner e até mesmo o soprano de Edson Cordeiro, entre outros que caracterizam esse álbum como "Uma antropofagia, até sadia, / tornou a nossa música salada / de fruta, nacional ou importada" como canta Tato Fischer, tecladista dos secos e molhados, na faixa inaugural do álbum.  

Importante explicitar como a obra de Mattoso é afetada pelo desenvolvimento do glaucoma, como, ao abraçar sua cegueira, o poeta se aferra aos sonetos isométricos, retorna a uma poesia calcada na sonoridade, no ritmo e na eufonia dos versos. É este evento que, ao tornar-se crônico, volta toda a genialidade do autor, antes posta na concretude dos seus versos, para os elementos do som. É interessante ainda perceber que a forma conecta esses elementos da poética do Pedro, o Podre até o Glauco Mattoso. Em seu Soneto 241 Ensaístico, cantado na Melopéia por Wander Wildner, o poeta demonstra seu reconhecimento por sua fase inicial “Chamemo-la de fase iconoclasta, / à minha poesia antes de cego. / Pintei, bordei. Porém não a renego. para então dizer o motivo de sua guinada: “Forçou-me a invalidez a dar um basta.” e apresentar sua nova fase “A nova não é casta, nem contrasta / com velhas anarquias. Só me entrego / ao pé, onde em soneto a língua esfrego. / Chamemo-la de fase podorasta. em que conta como, apesar da aparente distância, ainda há conexão entre suas fases à primeira Iconoclasta e a segunda Podorasta. Esta segunda ele concilia com a primeira ao dizer “Mas nem por isso é menos transgressiva. / Impõe-se um paradoxo na medida / da forma e da temática obsessiva” e, como chave-de-ouro, seu último verso é “Ao cego, o feio é belo, e a dor é vida. em que o contraditório entra em harmonia através de sua poesia. O paradoxo de sua produção poética é parte de sua conciliação e une, nos seus próprios termos, a forma do poema concreto com a forma do soneto. E demonstra que é possível expressar-se dentro do crivo da forma em objetos poéticos que podem ser visuais como uma estrutura de concreto ou sonoras como aquelas de um cego aedo grego. 

 

Capítulo 1: Fase Iconoclasta 

 

 

Chamemo-la de fase iconoclasta, 

à minha poesia antes de cego. 

Pintei, bordei. Porém não a renego. 

Forçou-me a invalidez a dar um basta. 

 

 

JORNAL DOBRABIL 

 

A fase iconoclasta do autor, tem na profusão das edições do JORNAL DOBRABIL1 o seu ponto de inflexão, ilustrando ali suas principais manifestações poéticas, políticas e estéticas. Posteriormente, o autor rememora essa fase no Soneto 241 Ensaístico. 2 Em seu quarteto inicial o soneto revela a autodefinição do autor como iconoclasta, alguém que desafia e destrói os padrões estabelecidos pela sociedade. Os versos Chamemo-la de fase iconoclasta, / à minha poesia antes de cego. / Pintei, bordei. Porém não a renego. / Forçou-me a invalidez a dar um basta expressam a atitude rebelde e transgressora do autor em relação à sua própria poesia. Mesmo na iminência de perder a visão devido ao glaucoma, ele não renega seu estilo e suas experimentações. 

Chamemo-la de fase iconoclasta, o próprio autor assim a chama e é bem propícia tal afirmação, afinal, em sua produção dessa época percebe-se que o auto publicado JORNAL DOBRABIL se marca pelos heterônimos diversos atuando em diálogo, conflito, crítica e em registro marcante do momento, histórico, que o autor vive sua poesia antes de cego. Seus heterônimos poderiam muito bem cantar Pintei, bordei. Porém não a renego., pois, durante os anos de chumbo da ditadura militar, as edições do jornal são, em suma, sua forma de protesto, sua militância artística, poética, estética e política. Neste período, as edições do jornal se tornam, em essência, uma forma de protesto e uma expressão de sua militância.  

Dentro das páginas do JORNAL DOBRABIL, através do seu Manifesto Coprofágico 3,um discurso que permeia seus heterônimos e os evidenciando em sua referência ao Manifesto Antropofágico 4 de Oswald de Andrade, travando uma guerrilha poética contra os poderes estabelecidos pelo golpe de 1964 e seus apoiadores na imprensa, revistas e na sociedade em geral. 

Ainda na década de 1970, o poeta encontra na Arte Postal uma maneira de contornar a vigilância imposta pelos militares, adotando uma abordagem artesanal para a produção independente. A proliferação de revistas literárias na época inspira Glauco Mattoso na criação de sua obra - o JORNAL DOBRABIL. Durante as décadas de 1970 e 1980, ele reside temporariamente no Rio de Janeiro, onde ganha notoriedade na marginália literária ao editar o fanzine "anarcopoético" intitulado JORNAL DOBRABIL, um trocadilho com o Jornal do Brasil, que era então o jornal mais influente no Rio de Janeiro. Ao satirizar o Jornal do Brasil, o DOBRABIL vai além da mera paródia do nome, trazendo uma abordagem irreverente à poesia criada pelos heterônimos do autor, cujos destinatários eram cuidadosamente selecionados. 

No JORNAL DOBRABIL, destaca-se não apenas o conteúdo com temas irreverentes, mas também a reinterpretação da antropofagia. Mattoso publica seus manifestos Escatológico5 e Coprofágico nesse veículo, reinterpretando a antropofagia oswaldiana sob o título de coprofagia, que envolve a reapropriação do que é excluído ou rejeitado culturalmente. Os poetas da época não visavam apenas estabelecer uma vanguarda literária tradicional; seu propósito primordial residia na oposição às circunstâncias políticas, morais e, sobretudo, artísticas prevalecentes. Mattoso adota uma posição contrária ao ideal de beleza, deliberadamente expondo uma linguagem transgressiva em seus manifestos. Seu vocabulário é repleto de palavras censuráveis pelos valores morais da sociedade em que se insere. Trata-se de um abandono estético dos padrões estabelecidos, questionando a necessidade de uma poética com palavras suavizadas e eufemísticas, em vez de termos que dizem explicitamente o que pretendem. Trata-se de um abandono estético dos padrões estabelecidos que questiona a necessidade de uma poética de palavras suavizadas, eufemísticas, de termos que aludem com vergonha de dizer o que querem de fato. 

Ao longo do JORNAL DOBRABIL há um desfilar profícuo dos heterônimos de Pedro José Ferreira da Silva. Cada qual com sua própria persona, estilística e temática favorita. Pedro, o Podre compartilha as páginas, colunas e pautas do jornal com Pedro, o Glande, Pedro Ulysses Campos, Garcia Loca, Billy Lyra, Glauco Espermatoso, Pedravski, Pedro Pedra, Puttisgrilli e o próprio Glauco Mattoso. Interessa salientar que cada um assume funções editoriais que lhes são próprias, quais sejam, redator, editor, colunista, leitor, anunciante etc. 

O que se pode chamar de seu projeto estético reside na meticulosa construção da persona literária de Glauco Mattoso, que confunde o leitor ao misturar aspectos de sua vida privada com seu universo ficcional. Isso permite uma leitura interpretativa que considera a figura autoral como um heterônimo, semelhante às instâncias literárias criadas no JORNAL DOBRABIL e em outras publicações que marcaram seus primeiros passos na carreira literária. 

Segundo Ana Paula Aparecida Caixeta (2018), nós podemos recorrer a Fernando Pessoa (2012), que descreve a heteronímia como a criação de um "autor fora da pessoa", uma individualidade completa fabricada pelo próprio autor. Mattoso, por sua vez, apresenta uma notável proliferação de heterônimos, como "Pedro, o Podre" e "Pedro, o Glande", que desempenham diferentes papéis no JORNAL DOBRABIL. A repetição desse gesto criativo sugere uma possível revisão da ideia de que Glauco Mattoso seja apenas um pseudônimo. Seu apego aos discursos auto escarnecedores e à brincadeira com nomes próprios por meio de trocadilhos e personificações reforça a construção ficcional de sua identidade literária, indo além de um mero espaço para confissões pessoais. 

Outrossim há um jogo com as distintas consciências literárias de seus heterônimos é uma constante ao longo da produção literária de Mattoso, sendo especialmente evidente em "Pedro, o Podre", satírico e fescenino, no JORNAL DOBRABIL. Em uma de suas publicações, Pedro, o Podre deixa claro que cagar é um ato político6 colocando assim a escolha manifesta pela coprofagia como tema central dentro da obra de Mattoso.  O Podre é responsável pela parte mais chula e iconoclasta do jornal, enquanto Glauco Mattoso desenvolve poemas mais elaborados e de temáticas diversas. Embora haja essa distinção, não existe uma divisão clara entre os versos concretos, experimentais e humorísticos, pois ambos os estilos coexistem no JORNAL DOBRABIL. 

Segundo João Maria Freire Alves (2015), em sua tese, seu principal heterônimo artístico, Glauco Mattoso, alude à sua cegueira e marca sua própria literatura, Mattoso, atravessa suas obras literárias com tantos outros heterônimos, especialmente na fase de escrita no JORNAL DOBRABIL. Entre eles estão Pedro, o Glande, Garcia Loca (com os quais assina seus dois manifestos mais famosos: Manifestivo Vaguardada e Manifesto Coprofágico), Pedro, o Podre, Glauco Espermatoso, Pedravski, Puttisgrilli, e o próprio Glauco Mattoso. Dentro da estética mattosiana, cada heterônimo possui identidade própria que, porém, não deixam de ser versões do próprio autor. Os limites distintivos entre os heterônimos e o autor são ambíguos e permeáveis. Convém notar que, dentro dessas miscelâneas de alcunhas, nomes e heterônimos o próprio Pedro José Ferreira da Silva, inexiste enquanto signatário dos textos literários. São esses heterônimos que ocupam todo o espaço autoral, não sobrando ao Pedro original qualquer espaço para assumir um papel autoral dentre os tantos que assinam suas obras. 

A coprofagia, elemento central do JORNAL DOBRABIL e da maioria de seus escritos, é definida por Glauco, como uma releitura escatológica da antropofagia. Segundo Glauco Mattoso, ela representa a linguagem vulgar, inspirada em suas leituras, parodiada e transportada para o papel por meio de sua máquina de escrever, com a datilografia definindo o formato tipológico do JORNAL DOBRRABIL. 

Coprofagia esta que é uma ação abjeta que faz parte do discurso da "merda" e representa uma sátira à antropofagia oswaldiana, que aglutinava elementos culturais alheios para criar uma cultura própria. Na visão de Mattoso, a coprofagia é um processo de recolhimento do que foi culturalmente excluído, representando literariamente a mistura e a influência direta do que é lançado ao autor como uma forma de apropriação do discurso e da criação do outro. 

É no JORNAL DOBRABIL que os manifestos coprofágico e escatológico são publicados, estabelecendo uma ligação direta com o manifesto antropofágico oswaldiano. A cegueira que atinge Mattoso e sua fixação na podolatria, que compõe a narrativa de seus desejos íntimos e fetiches, desempenham um papel fundamental na construção de sua poética escatológica. Antes de perder a visão, o poeta recicla de forma jocosa a antropofagia oswaldiana, reinterpretando-a por meio do conceito de coprofagia. Este processo representa a valorização de atributos muitas vezes negligenciados no contexto formal do universo erudito. 

 

(MATTOSO, JORNAL DOBRABIL, 2001, p. 11). 

 

Glauco Mattoso publica o Manifesto Coprofágico, um pastiche do Manifesto Antropófago em seu suplemento jornal dadarte que ocupava o verso de seu JORNAL DOBRABIL. Pastiche é um termo utilizado na literatura e nas artes para descrever uma obra ou estilo que imita ou faz homenagem a outros estilos, obras ou autores.  Em um pastiche, o criador emprega técnicas, temas e elementos característicos de outras obras, misturando-os para criar algo novo, mantendo, no entanto, uma reverência ao material fonte. Essa técnica permite uma intertextualidade, dialogando com diferentes tradições e estilos literários ou artísticos. O pastiche pode ser usado para explorar ou questionar gêneros e convenções estabelecidas, oferecendo uma maneira de conectar diferentes períodos, estilos e abordagens em uma única obra. 

Neste manifesto, Mattoso realiza um jogo de palavras com os versos iniciais do poema "Romance Sonâmbulo" de Federico García Lorca, dedicado a Gloria Giner e Fernando de los Ríos, que começa com "verde que te quero verde". Esse jogo de palavras é utilizado para desenvolver ícones comportamentais e transgressores que permeiam sua poesia. A palavra "merda" é recorrente ao longo de todo o "manifesto" e sugere a decomposição da tradição sem, no entanto, desprezá-la completamente. Os versos finais refletem a intenção e a atitude do poeta: "Merda (...) és meu continente terra fecunda onde germina, minha independência, minha indisciplina". A Coprofagia, dialogando com a Antropofagia e a tradição, torna-se um ponto de referência fundamental na poética de Mattoso. Enquanto os modernistas tinham a Antropofagia como seu princípio criativo, Mattoso adota a Coprofagia como uma forma de "degustar" preceitos anteriores para criar novas perspectivas. No entanto, ele adverte que o resultado dessa deglutição pode não ser agradável aos olhos da sociedade tradicional, patriarcal, censuradora e excessivamente conformista. Assim, ele desafia, rebela-se, confronta e choca com uma poética que está longe de ser convencional e moldada. 

Escrever sobre Glauco Mattoso é uma tarefa que também possui suas facilidades ao deixar explícitas suas intencionalidades e metodologias. Seus escritos em prosa e verso frequentemente têm caráter autobiográfico e, além disso, apresentam uma dimensão autoanalítica, por meio da qual investiga sua própria psique, motivações, técnica e estilística. Em seu prefácio do livro JORNAL DOBRABIL, o autor discorre sobre o momento histórico de sua produção marginal, explicando sua técnica e os meios disponíveis nesse período. 

O processo criativo de Mattoso desenrola-se como um intrigante jogo no qual o autor e o leitor se envolvem em múltiplas percepções, explorando o terreno entre o real e o fictício, o cotidiano e, principalmente, o humano. De maneira contrária às convenções e aos preciosismos associados à criação e à genialidade, Glauco Mattoso constantemente faz referência a essas normas, demonstrando sua compreensão perspicaz do processo criativo e autoral. 

O poeta paulistano traça uma linha condutora que persiste em seu vasto conjunto de obras, guiada por elementos estéticos que se repetem com frequência, portanto, propositais e integrantes de um projeto estético deliberadamente construído. Entre esses elementos, a figura autoral com inclinações fetichistas – o sujeito que existe para além do domínio literário – é explorada com minúcia, da mesma forma que seus textos poéticos e narrativos. A preocupação do autor com a representação pública do escritor denota um gesto que vai além do aspecto estético, abrangendo discursos que outras instâncias hesitariam em assumir como autorais. Estes discursos, marcados por uma ironia em relação à própria poesia, à criação e à autoria, manifestam-se através de uma linguagem escatológica, dando forma à peculiar coprofagia glaucomattosiana. 

Escolher uma figura autoral que dê conta da sua condição confessada – no caso, a maldição da cegueira e o fetiche por pés – e que assuma discursos complexos e delicados no que tange aos corpos, aos valores morais, éticos e religiosos é uma possibilidade válida quando se trata de um personagem. O autor chama a cegueira de maldição e alia-se a ela provocando uma espécie de personificação da cegueira e do glaucoma. O glaucomatoso Glauco Mattoso é bem mais do que um sujeito comum fora do espaço ficcional, é uma instância literária que ocupa o espaço da legitimação de discursos: 

Só mesmo os estabelecimentos bancários (..) dispunham de computadores, então monstruosamente grandes. Jornalistas e escritores utilizavam máquinas de escrever (...) As duas marcas mais vendidas, Remington e Olivetti, não diferiam muito em qualidade o estilo, e todas apresentavam as mesmas limitações: fonte única, corpo único, padrões únicos de alinhamento verticais e horizontais, isto é, monoespaçamento (letra embaixo de letra, sempre o mesmo limite de toques por linha) e entrelinha mínima equivalente a um dente da engrenagem movida pela alavanca, de modo que esta descia uma linha avançando dois ou mais dentes. Quem quisesse trocar de fonte, de corpo, ou de redondo para itálico, teria que trocar de máquina (Mattoso, 2001: 2). 

Quando Pedro José Ferreira da Silva assinava seu JORNAL DOBRABIL com sua profusão de heterônimos , o mesmo já tinha em seu horizonte a perda da visão para o glaucoma e sua poesia marcada pela visualidade do concretismo era uma de suas tantas auto ironias, pois, obsessivo com a perda futura da visão trabalhava com as formas mais intrincadas da poesia concreta 

Eu misturei as coisas porque o concretismo era muito clean, era muito limpo, era muito assim antisséptico, não contaminado pela poesia de banheiro, pela poesia de bordel e não de cordel, né? E eu comecei a misturar as coisas, então eu já fui, mais ou menos, mal-criado, né? (00:03:51 - Mattoso em entrevista a Pinto, Manuel da Costa   2019 - Biblioteca Pública de São Paulo). 

O Concretismo, um movimento literário e artístico que ganhou destaque na década de 1950, representa uma abordagem inovadora na poesia e nas artes visuais. Caracteriza-se pela ênfase na estrutura e na forma, em detrimento do conteúdo semântico convencional. Os poetas concretistas rompem com a linearidade tradicional da poesia, explorando a disposição espacial das palavras na página para criar significado e ritmo visual. Isso faz com que a poesia concreta transcenda a mera leitura oral, convidando o leitor a uma experiência visual e perceptiva mais ampla. 

A Poesia Visual, intimamente relacionada ao Concretismo, amplia essa exploração da forma visual da linguagem. Enquanto o Concretismo foca na estrutura e na disposição espacial das palavras, a Poesia Visual vai além, incorporando elementos gráficos, cores, e até mesmo interações tridimensionais. Esta forma de poesia não se limita ao texto, mas utiliza todos os aspectos visuais da página (ou de qualquer outro meio onde seja apresentada) para comunicar e evocar emoções. A Poesia Visual desafia as fronteiras entre a poesia e as artes visuais, fazendo com que cada obra seja uma experiência única tanto de leitura quanto de observação.  

O Soneto 241 possui fortes elementos biográficos e de autoironia. Nesta primeira quadra somos confrontados com esta fase na qual o poeta se enxerga como um iconoclasta o autor se utiliza dos eufemismos "pintei, bordei" para dizer de suas inúmeras transgressões à sociedade e aos padrões éticos, estéticos e políticos de seu tempo, conforme podemos perceber na citação acima.  Em seu JORNAL DOBRABIL, principal publicação do autor à época, vemos expressões como "Cagar é um ato político" escrito através de uma técnica de conjugação de letras para formar um tamanho de fonte maior que a padrão da máquina de escrever utilizada. Sobre a própria máquina, seu instrumento de composição Glauco esmiúça detalhes do fazer poético que sofre a censura da própria técnica, onde as características inerentes ao funcionamento do equipamento que utiliza para datilografar os originais de seu jornal são fundantes para o resultado de sua produção estética. 

O ovo de Colombo foi a descoberta do meio espaço, isto é, a possibilidade de teclar uma letra na posição intermediária entre dois caracteres normalmente digitados, o que era obtido pressionando-se o espaçador simultaneamente à tecla desejada. Aqui surgiu fundamental diferença entre uma Remington e uma Olivetti. A primeira não posicionava a letra exatamente na metade da distância entre os dois dígitos, enquanto a segunda tinha total precisão (Mattoso, G. Uma odisséia do meio espaço JORNAL DOBRABIL, 2001, p. 2). 

O autor descreve, detalhadamente, os aspectos técnicos que o fizeram optar pela Olivetti no lugar da Remington. Conta como o meio ponto preciso oferecido pela máquina escolhida foi fundamental para a realização das suas pretensões poéticas concretistas e satírico-fesceninas. Através dessa técnica de formatação do texto em uma página A4 o autor desenvolve uma capacidade de desenhar e emular um jornal de maneira autônoma e independente do maquinário necessário para imprimir um jornal tradicional. O JORNAL DOBRABIL é uma paródia poética e política dos jornais de sua época reiteradamente censurados e vigiados pelo aparato repressivo da Ditadura Militar vigente à sua época 

Feita a escolha, pude compor linhas "pontilhadas" onde cada ponto era representado pela letra "o" minúscula, que por seu formato circular permitia direcionar a linha tanto na horizontal quanto na vertical ou diagonal.(...) A partir daí, a criatividade e o mimetismo não teriam limites na pesquisa de famílias tipográficas assemelhadas às mais diversas fontes empregadas pela grande imprensa nos cabeçalhos e manchetes, bem como pelos artistas gráficos em seus projetos semióticos (Mattoso, G. Uma odisséia do meio  espaço JORNAL DOBRABIL, 2001, p. 2). 

Em suas páginas emulam-se colunas, reclames, propagandas, correio opinativo tal e qual um jornal tradicional, mas dessa vez com um conteúdo lírico que desconcerta o leitor e provoca a reflexão sobre os temas abordados. 

Meu fanzine passou a fazer parte disso porque era uma folha só. Frente e verso, eu datilografava, xerocava e misturava nisso tudo. Nessa datilografia, misturava um pouco de poesia de banheiro não é um pouco de poesia concreta? E um pouco de classicismo, aquela coisa de mexer com os com os autores clássicos. Só que de uma forma desrespeitosa. (00:04:54 - Mattoso em entrevista a Pinto, Manuel da Costa   2019 - Biblioteca Pública de São Paulo).  

JORNAL DOBRABIL pode ser dividido entre suas edições cariocas do ano de 1977 correspondentes às folhas de 1 a 21 da edição em livro e as paulistanas das folhas 22 a 25 de 1978, das folhas 26 a 33 de 1979, das folhas 34 a 49 de 1980 e das folhas 50 a 53 de 1981. No verso da folha 1 temos a assinatura de Pedro, o Podre nos versos: 

 

(Mattoso, Glauco, JORNAL DOBRABIL, numero hum!!!, anno xiii!!!) 

 

Nos versos seguintes, o poeta continua misturando o chulo com reivindicações de sua época, aproximando palavras como "peidar" com "liberdade democrática", "mijar" com "direito humano" e ao mencionar "esporrar", o autor destrói a expectativa de uma sequência convencional. Além disso, ele insere sua assinatura "o Podre", evocando, através da estilização das letras, a presença sutil do nome "Pedro" que compartilha do mesmo “p" de “peidar" em mais uma demonstração de sua auto ironia ao aproximar seu nome próprio de um ato censurado aos “afeitos às normas de etiqueta” como futuramente irá cantar no soneto Flatulento que também está presente no álbum Melopéia. 

O uso de expressões como "Cagar é um ato político" exemplifica a provocação e a transgressão presentes no JORNAL DOBRABIL. Essa frase, escrita com um tamanho de fonte maior, ocupa duas e linha, destaca-se visualmente e desafia a perspectiva poética tradicional, que muitas vezes valoriza a poesia como algo belo e límpido. Ao trazer elementos obscenos e prosaicos em um contexto de repressão da ditadura militar, o autor utiliza o humor e a troça como formas de enfrentar esse momento perigoso da época. 

Dessa forma, a fase iconoclasta de Glauco Mattoso, marcada pela poesia concreta e pela mistura de elementos chulos e transgressores, revela sua postura desafiadora em relação aos padrões estabelecidos e sua busca por uma forma de expressão autônoma e criativa, mesmo diante das limitações impostas pela sociedade e pela perda iminente da visão. O JORNAL DOBRABIL é a obra fundamental na bibliografia de Mattoso, onde seu discurso poético se entrelaça com seu discurso político e sua proposta estética. Seus manifestos, poemas concretos, poemas livres e sonetos convivem com seus temas chocantes e obscenos. É o espaço primordial no qual Mattoso exprime sua iconoclastia, com todas as suas contradições, transgressões e prazeres obscenos. 

 

 

 

Capítulo 2: Fase Podorasta 

 

 

A nova não é casta, nem contrasta 

com velhas anarquias. Só me entrego 

ao pé, onde em soneto a língua esfrego. 

Chamemo-la de fase podorasta. 

 

 

Fase Podorasta 

 

O contraditório m de ser um poeta visual e concreto carregando em seu horizonte a cegueira tem sua resolução com a virada dos anos 90, quando, Glauco Mattoso finalmente se vê diante da cegueira e sobre a qual destila toda sua revolta frente à medicina, aos médicos, durante o programa Provocações conduzido pelo apresentador Antônio Abujamra7. Nesta entrevista, Glauco e Abujamra discorrem sobre as taras, a política e a própria postura do autor em sua vida e sua obra literária. Temos ali também o autor se revoltando, mas também escarnecendo-se da sua cegueira. Tal depoimento, em conjunto com sua profícua produção de conteúdo sobre o fazer poético, sobre a forma e a estrutura da poesia, nos permitirá analisar o Soneto 241 por sua extensão estética, biográfica, formal e sonora. 

Em uma entrevista mais recente, vemos o autor refletindo sobre o mesmo período 

Quando eu fiquei totalmente cego, não é? A 95 ainda já havia Windows 95, já havia um pouquinho de início de tecnologia. É. vamos dizer assim. O engatinhante da internet, não? Dali a pouco no ano 2000, eu já tinha o meu site pessoal construído por outra pessoa. Claro, eu não podia construir sozinho, mas eu já tinha e-mail e já tinha um computador falante. É um sistema desenvolvido pela Universidade Federal do Rio de Janeiro chamado DOSVOX (00:49:48 Mattoso em entrevista a Pinto, Manuel da Costa   2019 - Biblioteca Pública de São Paulo). 

Glauco Mattoso revela uma fascinante jornada de adaptação à perda da visão e suas implicações profundas em sua produção poética. A transição para a cegueira total, no contexto de um mundo que estava experimentando avanços tecnológicos, representa um desafio significativo para qualquer pessoa. No entanto, a maneira como Mattoso enfrentou essa situação é inspiradora e revela a resiliência humana e a capacidade de adaptação. Primeiramente, a citação destaca a importância da tecnologia na vida de Mattoso. O advento do Windows 95 e o "engatinhante" da internet abriram, para nosso autor, portas para novas oportunidades de interação e comunicação. Tal abertura é um processo distinto dos irmãos Campos na década de 70 pois aqui  a visualidade dá lugar à sonoridade, o computador falante de Glauco Mattoso é uma ferramenta fundamentalmente em prol da sonoridade chegando aos ouvidos do Poeta e lhe fazendo o lugar de seus olhos glaucomatosos. A capacidade de acessar a internet, ter um endereço de e-mail e utilizar um computador falante demonstra como a tecnologia desempenhou um papel vital em sua vida após a perda da visão. Além disso, a menção ao sistema "DOSVOX", desenvolvido pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, destaca o papel crucial da acessibilidade tecnológica na vida de Mattoso. Esse sistema permitiu que ele interagisse com o mundo digital de maneira eficaz, abrindo caminho para sua produção poética na rede mundial de computadores . No que diz respeito à produção poética de Mattoso, a citação sugere que a perda da visão não o impediu de continuar escrevendo e compartilhando sua poesia. A criação de seu próprio site pessoal e a utilização de um computador falante indicam que ele encontrou maneiras de superar as barreiras físicas e visuais para se expressar artisticamente. Isso é notável, pois muitas vezes a poesia é associada à visão e à imaginação visual. 

O segundo quarteto do Soneto 241 Ensaístico evidencia sua fase Podorasta.  Tal fase é marcada pela adoção dos sonetos como forma preferencial em sua produção poética após 1995. Os versos deste quarteto trabalham com a ambiguidade entre o pé métrico, que o poeta trabalha com rigor para compor seus versos isométricos e o pé objeto de fetiche do autor. O mesmo ocorre com a expressão língua que em soneto esfrega, mas que também poderia esfregar ao objeto do fetiche. Podorasta é o termo escolhido pelo poeta para traçar o paralelo entre a prática de submeter sua poesia ao crivo da métrica e prática do próprio autor com seu fetiche por pés. Tal momento do autor será analisado a partir do álbum Melopéia: Sonetos Musicados, onde seus sonetos construídos com o auxílio do computador falante são musicados e ganham mais um forte elemento de oralidade, rítmica e sonoridade.  A fase podorasta de Mattoso é, de certo modo, um retorno à poesia antiga que era indissociável da própria música. A figura grega do aedo cego ganha em Glauco uma nova versão se apartando da necessidade da visão como elemento crucial à poesia e o binômio preenchimento e vazio deixa de ser o elemento fundamental para o retorno da conjugação entre o som e o silêncio: 

Você tecla no teclado comum, e eu já tinha experiência, datilografia do teclado, e esse teclado vai te falando, vai te devolvendo a cada tecla você teclar no minúsculo, é uma voz feminina se teclar, com maiúscula, é uma voz masculina, então, você sabe se você está teclando minúscula ou maiúscula e todos os assentos toda, toda a pontuação é falada também. Isso permite escrever e depois ele lê para você. Você tem uma série de comandos que permitem editar o texto (00:50:28 Mattoso em entrevista a Pinto, Manuel da Costa   2019 - Biblioteca Pública de São Paulo). 

O seu método de escrita após a perda da visão é um testemunho da maneira como a tecnologia e a acessibilidade podem superar desafios pessoais significativos. A partir do uso de um teclado comum e um sistema de voz, Mattoso conseguiu continuar compondo e editando seus versos e prosas de maneira independente. O fato de o teclado utilizar uma voz feminina para minúsculas e uma voz masculina para maiúsculas é uma característica interessante, pois permite que ele saiba instantaneamente como está digitando e assegura o controle sobre a formatação do texto. Além disso, a capacidade do sistema de voz de ler todo o texto em voz alta é um recurso fundamental para a revisão e aperfeiçoamento de seu trabalho. A existência de comandos que permitem a edição do texto também é fundamental. Isso significa que Mattoso não apenas escreve, mas também pode corrigir, formatar e refinar seu trabalho de maneira eficaz, tornando-o um escritor produtivo e autônomo. 

Em seu livro, O que é Literatura Marginal, Glauco discorre sobre o tema título propondo que ser marginal é margear dois universos paradigmáticos distintos, conjugar duas semânticas e significâncias que de outro modo não poderiam coexistir. Estar à margem é publicar-se e ao mesmo tempo estar fora do mercado editorial. É construir sua própria poesia e ser questionado sobre o valor de sua poética. É ser vanguarda e ao mesmo tempo retrocesso.  Glauco, apesar de não se dizer marginal em seu próprio livro, cultiva, em sua poesia e fazer poético, o contraditório como uma de suas grandes marcas. Adota a norma culta pré 1940 por rebeldia: 

E aqui as reformas foram feitas artificialmente, foram na base da ditadura, foi no regime do Vargas que eles reformaram na marra, ou seja, não foi uma coisa espontânea e eu, obviamente, não podia concordar com isso, porque eu sou tradicionalista em matéria de literatura, eu gosto de cultivar essas formas mais antigas e ao mesmo tempo, sou rebelde. Eu não gosto de coisas impostas como aconteceu.  As reformas vieram em períodos ditatoriais (00:37:50 Mattoso em entrevista a Pinto, Manuel da Costa   2019 - Biblioteca Pública de São Paulo). 

E mais, rebela-se contra o próprio glaucoma e se lança como um poeta concreto, mas um concreto sujo, marginal: Eu misturei as coisas porque o concretismo, era muito clean, era muito limpo, era muito asséptico, não contaminado pela poesia de banheiro, pela poesia de bordel e não de cordel, né?” E quando cego cultiva o soneto, forma clássica, de estrutura fixa, mas com sua temática fescenina, chula, transgride duplamente os possíveis paradigmas poéticos que poderia se inserir na contemporaneidade. Glauco Mattoso recusa o caminho do verso livre e abraça o metro desagradando, a poesia que se arroga de antissistema, mas repete em 2022 o que era feito como novidade em 1922.  E, por outro lado, não se insere como saudosista do passado ao trazer em seu sonetário o que há de mais ofensivo aos cultores da poesia tradicional. 

O álbum intitulado Melopéia representa uma contribuição significativa da obra do poeta Glauco Mattoso, lançado em 2001,  Melopéia  se coloca à margem das expectativas quando mostra-se parte do projeto poético do autor e não uma deliberação musical de um compositor. Aqui, a poesia não surge como uma forma de fixar um arranjo de um instrumentista, ou uma homenagem de um músico à poesia de outrem que lhe encanta.  Neste projeto, Glauco Mattoso estendeu um convite a uma diversificada gama de artistas musicais para a interpretação de seus sonetos por meio da música. A seleção de músicos abarcou uma ampla variedade de vertentes musicais, abrangendo desde o punk rock, representado pela banda Inocentes, até o funk, representado por DJ Krâneo 

A diversidade musical presente nesse álbum pode ser caracterizada como uma manifestação artística que evoca o espírito da antropofagia, ressoando a afirmação de Tato Ficher, tecladista da banda Secos e Molhados, na faixa de abertura do álbum, que proclama: "Uma antropofagia, até tardia,/ tornou a nossa música salada/ de fruta, nacional ou importada". Tal assertiva ressalta a natureza eclética e sincretista da obra, na qual a música brasileira se alimenta e absorve influências tanto de sua própria tradição quanto de elementos musicais estrangeiros, resultando em uma composição multifacetada que transcende fronteiras e rótulos estilísticos. 

Glauco é, portanto, profundamente paradoxal em sua criação poética. Rejeita, com prazer, as normas de etiqueta como Ayrton Muganaini Jr canta na faixa Flatulento do álbum Melopéia8 Já o poema Ensaístico é cantado9 por Wander Wildner, glaucomattosiano que traz para o “do it yourself” do punk e seus três acordes toda a complexidade de um soneto, não de um soneto qualquer, mas sim um cuja estrutura contrasta virtuosidade quando posto em harmonia com os arranjos propostos pela voz de Wander Wildner.  A música punk é conhecida por sua simplicidade e rebeldia, enquanto o soneto é uma forma poética altamente estruturada e tradicional. A combinação desses elementos opostos ressalta a natureza provocativa e desafiadora do poema. A poesia de Glauco Mattoso nos lembra que a literatura não deve ser uma prisão de regras e convenções, mas sim um campo fértil para a experimentação e a expressão individual. Seu poema "Ensaístico" nos convida a considerar a relação complexa entre forma e conteúdo na poesia, destacando como a quebra de expectativas e a exploração de contrastes podem ser poderosos meios de comunicação artística.  Além disso, a escolha de Wander Wildner, um músico associado ao punk-brega, para interpretar o poema em uma canção, demonstra a versatilidade da obra de Mattoso e sua capacidade de transcender fronteiras artísticas. A música, como a poesia, é uma forma de expressão artística que também pode ser desafiadora e subversiva. A colaboração entre Mattoso e Wildner ressalta a ideia de que a arte não deve ser confinada a categorias estanques, mas pode fluir livremente entre diferentes formas e estilos. 

 

 

 

Capítulo 3: Dos Olhos ao Ouvido 

 

 

Mas nem por isso é menos transgressiva. 

Impõe-se um paradoxo na medida 

da forma e da temática obsessiva: 

 

 

Tomando o segundo terceto do Soneto 241 Ensaístico como fio condutor da análise aqui serão abordados os aspectos formais da produção Mattosiana em suas duas fases: Iconoclasta e Podorasta. Analisaremos como o estilo do autor se adequou aos modos de produção poética tão distintos quanto a poesia concreta e os sonetos. Glauco, em seu JORNAL DOBRABIL, sua maior expressão poética antes de cego faz troça reiterada com as normas, com as regras presentes em cada estrutura a que recorreu para ensaiar sua obra poética: 

Mas a experiência de ter enxergado um pouco foi fundamental, porque aí eu trabalhei um pouco com quadrinhos, com aquela diagramação bem vanguardista de você usar letras numa num espaço de papel e brincar com as letras, fazer bastante jogo, né? Visual gráfico e depois disso, ficou tudo na memória. (00:07:41 Mattoso em entrevista a Pinto, Manuel da Costa   2019 - Biblioteca Pública de São Paulo)  

Para Glauco ter enxergado durante anos foi fundamental, pois isso lhe permitiu trabalhar com quadrinhos e experimentar com a diagramação, especialmente com a utilização de letras em um espaço de papel de maneira vanguardista. Ele destaca a importância de brincar com as letras e criar jogos gráfico-visuais. Após tal vivência, tudo ficou gravado em sua memória, sugerindo que a visualidade teve um impacto significativo em sua criatividade e forma de abordar o design gráfico. 

 

(Mattoso, Glauco, JORNAL DOBRABIL, numero hum!!!, anno xiii!!!) 

 

 

Aqui temos um exemplo de como o poeta percebia a própria tipografia, elemento base de seu pastiche em forma de jornal. Cada palavra deste poema concreto contradiz a recomendação expressa em seu conteúdo semântico. Glauco emula em sua máquina de escrever diferentes fontes tipográficas, diferentes estilos de fonte, caixa alta, caixa baixa, letras em itálico. Constrói assim um anti-axioma do dito em contradição ao visto. A visão contradiz aqui o que se lê, mas ambos coexistem enquanto obra poética. O poema concreto AXIOMA começa com a palavra "APENAS" em letras maiúsculas, enfatizando a ideia de que apenas um tipo de letra deveria ser usado em um jornal. No entanto, conforme o poema avança, cada linha introduz um tipo de letra diferente, uma mistura de maiúsculas e minúsculas, e até mesmo letras em itálico. Isso cria um efeito visual de caos tipográfico, no qual as palavras são distorcidas e se sobrepõem, tornando o texto praticamente ilegível.  A ironia e a provocação do poema residem no fato de que a forma como o texto é apresentado contradiz completamente o conteúdo. O poema se apresenta como um "axioma" que prega a simplicidade tipográfica, mas na realidade, ele faz o oposto, bagunçando deliberadamente a tipografia. 

 O paradoxo de forma e conteúdo é uma das marcas mais fortes da obra de Glauco Mattoso, desde quando assinava proficuamente como Pedro, o podre.  Essa contradição entre a forma e o conteúdo é uma característica marcante da obra de Glauco Mattoso, que muitas vezes desafia as normas literárias e culturais. Ele usa a tipografia como um meio de expressão artística, explorando como a forma visual das palavras pode afetar a interpretação do texto. Em AXIOMA questiona a autoridade das normas e regras linguísticas, ao mesmo tempo em que nos faz refletir sobre como nossa percepção da linguagem pode ser moldada pela apresentação visual: 

A memória visual agora guardou tudo, aí eu reiniciei depois de cego, numa nova fase, aí passou a ser a parte da memória, a coisa importante.  (00:08:04 Mattoso em entrevista a Pinto, Manuel da Costa   2019 - Biblioteca Pública de São Paulo). 

Glauco menciona que sua memória visual guardou tudo o que ele havia experimentado anteriormente, e depois de se tornar cego, iniciou uma nova fase em sua vida. Nessa nova fase, a memória se tornou uma parte crucial e importante de seu processo criativo, substituindo a percepção visual que ele não tinha mais. Isso destaca a adaptabilidade e a resiliência de Glauco Mattoso em sua jornada criativa, mesmo após enfrentar desafios significativos relacionados à perda de visão. É interessante notar como os princípios norteadores de sua poética permanecem em suas diferentes fases. Como a perda da visão o manteve ferrenho em seu apresso não só pela forma, mas também pelo paradoxo. 

Então o metro, a rima como no caso do cordel ou do rap, passaram a ser fundamentais porque eu compunha, e já ia retendo de memória tudo medinho, tudo rimado para facilitar as coisas e isso me reaproximou do classicismo, porque eu era, na fase visual, eu era muito moleque, muito iconoclasta. Eu gostava de desrespeitar as normas, fazer uma coisa bem anti convencional.  À medida que eu fui recuperando a memória depois da visão eu fui revalorizando aquilo que era clássico na literatura, como por exemplo, o soneto. É o tipo de poema mais clássico que existe mais tradicional, com séculos de existência. (00:08:17 Mattoso em entrevista a Pinto, Manuel da Costa   2019 - Biblioteca Pública de São Paulo)  

Mattoso menciona como, após ficar cego, ele passou a valorizar elementos métricos, como o metro e a rima, ao compor seus poemas. Ele descreve sua fase anterior à cegueira total como "moleque" e "iconoclasta", caracterizada por uma abordagem anticonvencional e desrespeito às normas literárias. No entanto, à medida que recuperava a memória após a cegueira, ele começou a revalorizar aspectos clássicos da literatura, como o soneto. Essa mudança é refletida no soneto "Ensaístico", que possui uma estrutura formal, com métrica e rima rigorosas. A comparação entre o trecho da entrevista e o soneto destaca como a perda da visão influenciou a transformação da poesia de Mattoso, levando-o de uma abordagem iconoclasta para uma valorização do classicismo literário. Isso ilustra como as experiências pessoais podem moldar a expressão artística de um poeta ao longo de sua trajetória. Essa evolução na abordagem de Glauco Mattoso em relação à sua poesia, conforme mencionada na entrevista, também é evidente ao analisar o soneto "Ensaístico". O poema, que segue uma estrutura formal clássica de soneto com métrica e rima rígidas, demonstra o retorno do poeta à apreciação de elementos tradicionais da literatura, como o uso do soneto. No entanto, apesar dessa adesão ao formalismo, o conteúdo do poema permanece ousado e provocativo, abordando temas relacionados à sexualidade e à transgressão, como é característico da obra de Mattoso. Isso cria um interessante contraste entre a forma e o conteúdo, evidenciando o paradoxo que permeia sua poesia, como mencionado anteriormente. 

Iremos, pois, analisar a estrutura formal do soneto Ensaístico, concluindo-se que o rigor poético do autor influencia a própria semântica, sonoridade e rítmica da obra MattosianaEnsaístico é um soneto de estrutura clássica, composto por dois quartetos e dois tercetos. Como recomenda Bilac em seu Tratado de versificação de 1905, Glauco Mattoso segue a estrutura temática e estrutural e, portanto, o Soneto em sua primeira estrofe obedece ao pressuposto de ser uma introdução ao tema a ser tratado pelo poema em questão, sua segunda estrofe trata do desenvolvimento, o primeiro terceto é aquele destinado ao ponto de virada temática e pfim a chave de ouro (ou clímax) é o objeto da quarta e última estrofe. 

  

 

 

Conforme podemos notar na Tabela 1.  O primeiro verso da primeira estrofe possui a curva rítmica ascendente devido a sua primeira tônica que recai em sua segunda sílaba poética. O referido verso é de acentuação grave por ter uma única sílaba pós-tônica. É um decassílabo heroico por sua contagem silábica terminar em uma décima tônica e possuir uma sexta sílaba como tônica forte. Entretanto, este primeiro verso possui a singularidade da sua quarta e sua oitava sílaba serem, também, sílabas tônicas e por tal além de heroico o verso também é classificado como sáfico.  

O verso heroico é assim nomeado por ter se consagrado pela poesia épica como, por exemplo, a Epopeia Os Lusíadas de Luís de Camões.  Já o verso sáfico é de origem grega, uma referência à estrutura que a poeta Safo, da ilha de Lesbos, usava para compor suas odes e líricas que louvam o amor, e posteriormente muito utilizado pelo romano Catulo em seus poemas de mesmo tema.  Mattoso, entretanto, não se limita aos preceitos de Bilac ao construir o verso desse soneto. Ao construir um verso que é ascendente, grave, heroico e sáfico ao mesmo tempo, o poeta também satisfaz os critérios de um pentâmetro iâmbico, metro esse consagrado pela tragédia grega de Sófocles e que possui um caráter fortemente musical. Não por coincidência tal pentâmetro é aquele eleito por Shakespeare para seus próprios versos. Tal metro, de origem grega, é assim nomeado pelo uso de cinco pés iâmbicos cujo ritmo é consagrado pela sequência de uma sílaba breve seguida por uma sílaba longa por cinco vezes consecutivas.  

Um verso que ao mesmo tempo é heroico, sáfico e também um pentâmetro iâmbico é uma construção incomum dentro da tradição poética, extremamente complexa e de difícil execução. E através de seu engenho poético Mattoso constrói um percurso rítmico que presta tributo a toda poesia ocidental, desde os gregos e romanos, passando por Camões e Shakespeare, até chegarmos a Olavo Bilac. Tal percurso poético de inegável apuro estético e de domínio métrico o elencaria ao ponto mais elevado do Parnaso. Ainda mais quando durante a escansão dos demais versos do poema percebemos que tal rigor métrico não se resumiu ao primeiro verso, mas que o poeta continuou escrevendo versos que são heroicos, sáficos e pentâmetro iâmbicos ao longo de todos os seus quatorze versos. Mas é justamente aqui que descobrimos o porquê dos versos dizerem em sua terceira estrofe: “Mas nem por isso é menos transgressiva. / Impõe-se um paradoxo na medida / da forma e da temática obsessiva” temos aqui um poeta cuja temática ofenderia sobremaneira os classicistas com suas enciclopédias e manuais, mas que também desconcerta, com seu absoluto rigor formal, a poética contemporânea que se põe contrafeita por qualquer resquício do uso da métrica. 

O paradoxo presente em Ensaístico vai além da mera combinação entre forma e conteúdo. Ele está enraizado na própria identidade do poeta, Glauco Mattoso, que desafia as normas da sociedade e da literatura de diversas maneiras. Mattoso é conhecido por sua poesia que explora temas ligados à sexualidade, ao corpo e à diversidade de gênero de uma forma franca e muitas vezes provocativa. Dentro do contexto literário brasileiro, onde a tradição poética frequentemente se alinha com a seriedade e a formalidade, a poesia de Mattoso se destaca como um desafio aberto às convenções. Ele não apenas aborda questões tabu, mas também o faz com um domínio técnico impressionante, como evidenciado no soneto Ensaístico. 

No entanto, a análise da obra de Glauco Mattoso não se limita apenas à apreciação de seu caráter transgressor. Também é importante reconhecer como sua experiência pessoal, incluindo sua perda de visão, influenciou sua poesia e sua adaptação criativa a novas circunstâncias. Sua transição de uma fase "iconoclasta" para uma fase "podorasta" revela sua capacidade de se reinventar e encontrar novas formas de expressão artística após a perda de sua visão. A memória visual, como ele menciona, tornou-se uma parte fundamental de seu processo criativo. O poeta também nos convida a refletir sobre a própria natureza da linguagem e da comunicação artística. Seus jogos de palavras, experimentações tipográficas e desafios métricos não apenas desafiam as convenções literárias, mas também questionam como a linguagem pode ser usada para transmitir significado e emoção. Ao criar um anti-axioma com seu poema concreto, ele não apenas contradiz as normas tipográficas convencionais, mas também nos faz questionar a própria autoridade das regras e convenções linguísticas. 

 

 

Conclusão: Pedro, o Podre e Glauco Mattoso 

 

 

Na universalidade presumida,  

igualo-me a Bocage, Botto e Piva.  

 Ao cego, o feio é belo, e a dor é vida.” 

 

 

Pedro José Ferreira da Silva termina seu soneto Ensaístico universalizando seu lugar enquanto poeta, um poeta que se iguala ao seu cânone pessoal como Bocage, poeta português da segunda metade do século XVIII, conhecido por seus poemas fesceninos como o Soneto da dama cagando que se inicia com: Cagando estava a dama mais formosa, /E nunca se viu cu de tanta alvura; /Porém o ver cagar a formosura /Mete nojo à vontade mais gulosa!  com um efeito de admiração e repulsa, de elogio e escarnecimento que vemos recorrentemente nos versos de Mattoso. O segundo nome desse cânone é Antônio Botto, poeta da segunda fase do modernismo português, escandalizou a elite conservadora da Portugal da primeira metade do século XX, porém, diferente de Glauco, seus poemas eram mais sutis ao cantar do seu amor homoerótico.  Já Piva é seu contemporâneo e um dos 26 poetas hoje de Heloisa Buarque de Holanda, lançado em 1976.  Roberto Piva compartilha com Glauco do erotismo, pornográfico, escatológico e político em seus versos nessa segunda metade do século XX e lança poemas como os Anjos de Sodoma e Porno-samba para o Marquês de Sade.  

É mister notar que o movimento de construção poética do autor ao longo das estrofes subverte a lógica de reverenciar primeiro seus gigantes (como diria Camões) e então contar sua história, seus gigantes, seu cânone pessoal, surge aqui, logo antes da chave de ouro do Soneto Ao cego, o feio é belo, e a dor é vida. E com essa chave sintetiza-se a obra de Glauco, a beleza está no feio, no contraditório, vida e dor não são opostos, mas sim os mesmos. Glauco Mattoso não diz que o feio é como belo para ele, mas sim que o feio é belo, não há uma comparação não há uma visão sutil ou metafísica aqui. Há em sua obra uma assunção do que gosto hegemônico nega, há uma atração pelo que gosto hegemônico rejeita. o auto escárnio, a autoironia que chama aqueles que o admiram para compartilhar com ele de sua visão marginal e paradoxal da poesia e da nossa própria sociedade. E seu cânone literário é personalíssimo, composto por autores que como ele são os rejeitados, os presos e degredados de todas as épocas como Sade, Gregório e Bocage. São a esses nomes que Glauco presta seu tributo e é neles que se inspira para erguer seus próprios edifícios de rima.  

Com o último terceto de Ensaístico concluímos o percurso poético do soneto que também é o percurso da vida poética do autor, inaugurado em suas edições do JORNALDOBRABIL cujo experimentalismo e profusão heteronômica vimos no primeiro capítulo, seu desenvolvimento e vaticínio que o conduziu da visão à cegueira no segundo capítulo, sua virada formal e sonetista levando seu formalismo à máxima potência no estudo métrico e estilístico feito no terceiro capítulo para chegarmos aqui nesta conclusão. 

 Ao longo deste trabalho percorremos a obra de Glauco sob a perspectiva da visibilidade atravessada por sua cegueira que evidenciou uma poesia que permaneceu fiel à forma e transitou dos olhos aos ouvidos, encontrou na construção formal da poesia elementos para manter sua própria produção poética a despeito das próprias limitações que o seu glaucoma lhe impôs. O poeta glaucomatoso não se intimidou com a imposição dessa doença que lhe retirou a visão como também não se intimidou com os abusos e traumas que sofreu em sua infância ou aos abusos perseguições que vivenciou nos anos de chumbo. O poeta Pedro abraçou a tortura que sofreu, abraçou a perseguição que viveu e por fim abraçou a sua própria doença para fazer-se Glauco Mattoso. Para ser um concretista, para ser um sonetista, um músico e assim compor uma obra poética respeitada e louvada por sua força e capacidade de fazer das palavras o seu maior e melhor instrumento para lidar com sua realidade ária e retornar a ela com humor e escarnio, demonstrando assim a coragem de um covarde. que se esconde além de toda métrica e de toda rima. 

 

Referências Bibliográficas 

 

ALVES, J. M. F. “O homem porno-gráfico: identidade inacabada em Glauco Mattoso”. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. 2015. Dissertação [Mestrado em Estudos da Linguagem]. 

 

Caixeta, A. P. A. (2018). Glauco Mattoso e as “memórias de um pueteiro”: identidade literária como estética de si. FronteiraZ. Revista Do Programa De Estudos Pós-Graduados Em Literatura E Crítica Literária, (21), 109–128. https://doi.org/10.23925/1983-4373.2018i21p109-128 

 

MATTOSO, G. JORNAL DOBRABIL. São Paulo: Edição do Autor, 1965-1966. 

 

MATTOSO, G. Soneto 241 Ensaístico. In: Pornô Chic. São Paulo: Editora 34, 1998. 

 

MATTOSO, G. SONETO 150 TROPICALISTA In. Paulicéia ilhada: sonetos tópicos. São Paulo: Ciência do Acidente, 1999. 

 

MATTOSO, G. Melopeia. [gravação de áudio]. São Paulo: Selo Sesc, 2013. 

 

PESSOA, F. Teoria da heteronímia. Porto: Assírio & Alvim, 2012. 

 

VELOSO, C. Língua. [gravação de áudio]. Rio de Janeiro: PolyGram, 198